segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Um minuto de silêncio

Pois a festa momesca teve lá seus percalços, este ano, um Cerro Fino. O Bloco dos Bambas – elevado, provisoriamente, à categoria de Escola por seus muitos feitos em prol da comunidade carnavalesca, teve contratempo agudo, justamente na véspera de botar seu samba na rua: Morre-lhe a vetusta e nonagenária mãe de seu Presidente. Foi o caos. A comoção foi geral. Houve até quem dissesse que tal perda era, deveras, irreparável. Tratava-se da mãe do líder, e ia desta para melhor em hora, inegavelmente, injusta e imprópria.
A velhinha tinha dado sinais de desavença com a vida em agosto mas, enfim, resolveu expirar em fevereiro...
Foi decretado estado de calamidade pública no Bloco. A Diretoria resolveu que ficaria em reunião permanente. Argumentos de um lado, condolências do outro e não se chegava a um estágio de equilíbrio dentro do grupo. Na primeira rodada de conversações ficou resolvido que a Escola guardaria luto siciliano e não colocaria o pé fora da quadra. Os instrumentos, incansavelmente tangidos, tocados, afinados e lustrados, no correr do ano, foram solenemente guardados para oportunidade mais alvissareira.
Entardeceu, ventou, choveu e o Bloco serenou. Na manhã do dia D, o tão esperado dia de brilhar na avenida, as conversações foram reatadas. Muito debate, diversos e cansativos discursos e a indefectível questão do “sair ou não sair”, foi posta, novamente, na mesa. Protestos de um lado, ponderações do outro, a situação estava escorregando para a radicalização, quando falou forte o mais velho da tribo. Experiente, homem de muitas luas e muitos sóis, abriu um claro de silêncio para deixar seu argumento passar. Disse que, no fundo, sinceramente, uma coisa nada tinha a ver com a outra, pois apostava que a pranteada mãe do presidente, se ali estivesse, como de fato estava, seria a primeira a querer que a Escola brilhasse na avenida. Deu pano pra manga afirmação tão contundente. Lá na cozinha acendeu-se uma esperança, mas na sala as caras continuavam amarradas. Alguém levantou a idéia de resolver o caso na boca da urna, sintonizando o samba-enredo mais vencedor deste país, que era o da eleição geral, global e total. E assim foi feito. Contados os votos, venceu por ampla margem, a proposta de sair e botar pra derreter. Venceu, mas sob duas severas condições: Primeiro, não concorrer a prêmios e segundo, respeitar um minuto de silêncio lá, na hora suprema do evento.
Tudo acertado, instrumentos recalibrados, porta-bandeira nos trinques, bateria dando chispas, puxador afinado, saiu a escola encarando o samba/tema, pegando fogo. O samba corria solto mas a Escola, lá no fundo, estava triste e melancólica. Sambava, é verdade, mas com visível consternação. Na frente do Palanque Oficial o breque foi mortal. A evolução vinha num crescente ao som vibrante do “ala lá, ô, ô, ô,” e estancou de repente, como se aquele tivesse sido o último ato carnavalesco de todos os tempos. Silêncio total. As moscas foram, pela primeira vez, ouvidas no reinado de Momo. O próprio Presidente fez a senha de que o minuto estava se exaurindo. O maestro fez o gesto de que o minuto tinha acabado. No mesmo instante a massa foi despertada para a continuação do efusivo e contagiante “ala lá, ô, ô, ô...” - como se nada tivesse acontecido. Depois disso o Bloco, elevado provisoriamente à categoria de Escola, atravessou a noite e o resto da avenida espalhando samba e batuque por todos os lados – coisa de levantar defunto...
E assim, Cerro Fino provou, mais uma vez, que é possível juntar extremos; servir a dois senhores; conciliar teses e antitéses; unir sim e não; equilibrar querer e dever; amigar razão e paixão. Tudo é possível – desde que seja no carnaval... 

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Leite no Portão

      Ao entardecer, era hábito tocar-se por diante uma vaca ou duas, rua a fora, para ser, doce e calmamente, ordenhada ao gosto do freguês.
         Depois que o General Mac Arthur disse que “juventude não é um período da vida e sim um estado de espírito”, não temo contar certas experiências pessoais de antanho que, como quer, denunciam uma longa jornada de primaveras.
         Do alto dessa sacada juvenil, tão estranha no estilo quanto absoluta no conteúdo, é que falo de um fato visto, vivido, acontecido e provado, há mais de 40 anos.
         No tempo em que os paralelepípedos e o asfalto ainda não tinham rendido as ruas de terra, pois, até em volta da praça houve formidáveis “peludos”, em dia de chuva, vendia-se (quase dado) leite, de porta em porta, espumoso, quentinho, gostoso, saído a gosto, da genuína embalagem original. Ao entardecer, era hábito tocar-se uma vaca ou duas, rua a fora, para ser doce e calmamente ordenhada ao gosto do freguês.
         A caravana sempre muito lânguida, mas providente, ia parando aqui e ali, saciando a sede, a melancolia e a tradição de uns, outros e outros. Juro que um dia flagrei o sol do ocaso, aceso de curiosidade, fazendo tempo, atrasando a marcha, só para assistir a engraçada cena. Digo mais – doa a quem doer – que vi o astro-rei morrendo de rir, mais do que de entardecer, daquela vista insólita, muito humana.
         A nossa vaca era de uma mansidão patética. Cruzada de Normando, espatifava, lenta e ruidosamente, seus pesados cascos, rua a dentro, deixando um rastro de odor original e sábias pegadas. No portão armava-se o circo. Uma bandeja cheia de canecas vinha lá de dentro. Do lado de fora, a gurizada inquieta reinventava travessuras. No rigoroso limite de seus botões, no mínimo dois adultos, suficientemente sérios, punham ordem da farra. Meia dúzia de desocupados emprestavam brilho ao encontro.
         A vaca, imperturbável, bovinamente ruminava, enquanto o conhecido leiteiro, muito dono de sua função, multiplicava mãos, gestos e gentilezas. Um copo para o menino, uma caneca para a menina. Bastante espuma para um, menos para o outro. E assim morria o dia, de barriga cheia e alma vadia...
         Naquele tempo, servia-se leite de casa em casa, com vaca e tudo. Não havia saquinhos nem prazo de validade do produto. Era tudo feito de forma direta – sem intermediários ou subterfúgios...
         Eu conto o que sei, o que vi, e o que experimentei! Disso mais dirá o sol daquelas tardes, testemunha fidedigna dos fatos que relatei.
         Fala sol...! Se faltar o verbo, que fale a lua, a estrela, o corisco, a fada ou a fantasia...

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A Crítica

Das histórias de D. Pedrito antiga, gosto muito de uma que conta a passagem de dois compadres, que vinham pela estrada do Ponche Verde, lá pela década de 40, a bordo de um Modelo A, ou coisa que o valha. Lá pelas tantas, disse o que vinha de passageiro, para o que estava no volante:
-         Mas tchê, tu não consegues nem enxergar os buracos!
-         É, e tu enxergas porque não vens manejando!
Tirando o conteúdo anedótico do causo, cabe em qualquer e sob os mais diversos pretextos, uma ilação sobre o teor crítico do incidente.
Vejam que o motorista dava-se por satisfeito, a braços com tarefa tão complicada que era a de guiar. Ao passageiro sobrava tempo e atenção para observar os solavancos. A exaustiva e exclusivista incumbência da pilotagem era ação quase sobre-humana, que ocupava todos os sentidos e exigia heróica destreza. O outro, apenas um passageiro sofrendo, solidariamente, os incômodos percalços da estrada, adensados pela intrepidez do motorista, reclamava, em altos brados e alguns galos na testa, a direção perigosa.
A lição que fica e ficará é a de que a crítica sempre estará mais à mão de quem não tem as mãos ocupadas. E não há mérito nem demérito nisso. É um fato da vida, do mundo e das circunstâncias. E, observem, bem atual e sempre universal. Se transportarmos a história para nossa relação com o Poder Público, por exemplo, veremos que tudo se encaixa. Tantas e tantas vezes reclamamos do piloto dessa mau incauta chamada Administração, quando, na verdade, a máquina é ingovernável, numa estrada tão ruim. Sejamos, no mínimo, tolerantes ou atentos e ativos co-pilotos, ajudando na travessia, em nome da boa chegada e contra os maus torcicolos...


Escrever

      A mórbida sanguessuga grudara-se, vagarosamente, na perna de Rita e um grito de medo/surpresa repicou nas suaves ondulações da lagoa.
         Um ventinho clássico, enrugando a tarde, fustigava a melena de Romário, estancando na barranca, de olho na bóia. Maria coçava, preguiçosamente, a palma da mão esquerda, campeando, no vazio, muitas luas para seu sonho de menina. Pitangas bravias tingiam a boca inexperiente de Lucas. Milena penteava-se com moleza e graça. Chico corria, obstinadamente, atrás de uma bola murcha. João quebrava gravetos com determinação e Pedro palitava os dentes com mansidão. Um bando de marrecas piadeiras pontilhava um tosco V no céu rosado e os galhos pendentes do velho salso choravam a morte de mais um dia de criação...
         Bem que esse poderia ser o bom começo de uma história simples, comum, promissora de emoções e repleta de qualidade humana. Esse flash de uma mera convivência familiar, espraiada em um dos milhares nichos de nossa rica e agredida natureza, poderia traduzir a grandeza das relações inter-pessoais embutida na misteriosa gruta do aleatório. O papel aceita tudo. Melhor dito, possibilidade extrema. Tal como no sonho, tudo pode acontecer. Escrever é destrancar cancelas existenciais e arregaçar entranhas emocionais, sem medos e sem culpas, para o que der e vier. Escrever é saltear tijoletas, pisando as desiguais, pulando linhas, num bailado tresloucado em busca de... liberdade.
         Escrever é vencer, sem tréguas, o soluço do corriqueiro. Escrever é desafiar, perigosamente, a suspeição do impossível...
         Na verdade, muito mais se exige na arte/ciência de escrever e convencer.
         A forma tem seu valor, mas o conteúdo é que realmente move e comove. A lógica não é imprescindível. A coerência é. O encadeamento é quase desprezível mas o comprometimento do contador é fundamental. Não basta narrar, é preciso sentir, se possível vivenciar, um tanto e um quanto do que se narra.
         O contador tem que sagrar suas próprias veias para revolucionar a alma do leitor. Escrever não é um ato impune. Escrever é a espontânea auto-condenação ao severo castigo em busca da expiação para a transcendência. Transcender é o limite para o ilimitado...
         Escrever é um meio e o fim será sempre incomensurável. No fundo, escrever é um tique subjetivo que toca o próximo pela semelhança ou pela imensa diferença sentimental ou circunstancial. O escrito é, no íntimo, o arrimo universal da inquietude das almas que crescem e por isso... padecem...!
         Escrever é a sufocação da mediocridade pelo supremo sopro da inspiração.
         Escrever é dedilhar estrelas, tanger nuvens e percutir o infinito.
         Escrever é o grito que a humanidade faz ecoar para viver e renascer.
         Esse o ato de escrever. E para os céticos ou desligados é bom que se diga que escrever é tudo isso e mais, porque será apenas loucura e insensatez pensar que o mundo na humanidade não será tão fundo, para sempre criar assombros – separando os dedos e juntando os ombros.
         Escrever é o sublime vício de liberdade...