De
barraca e caravana, resolveu se aventurar pela selva consumista em busca de
boas caçadas. Depois de se abastecer, lautamente, no perigoso e movediço reduto
das liquidações, unindo o útil ao agradável, decidiu embrenhar-se no mato
cerrado dos eletro-domésticos. Queria caçar um fogão à gás, tão oportuno quanto
necessário, para cozer a farta merenda nestes tempos de moeda forte.
Logo
percebeu que há fogões e fogões. No relance parecem todos iguais mas quando a
observação dos detalhes salta pelos olhos, entra pelo nariz, fere a ponta dos
dedos, despetala a flor da pele e pede abrigo na orelha esquerda, os fogões são
bem diferentes entre si. Uns tem isto e aquilo e outros não. Na verdade, todos
cozinham, mas uns mais que outros – mais e melhor – diz a propaganda.
Notando
imensa diferença de preço entre dois fogões, aparentemente iguais, quis saber a
razão da gritante distinção. O vendedor, cheio de si, robotizado pelo reclame –
mídia/marketing – falou, com garbo, do altíssimo de sua diferenciada qualificação:
-
“É que este tem forno
auto-limpante...!”
-
“Como assim?”
-
“O forno auto-limpante, está visto”!
-
“Significa, então, que, uma vez sujo, ele próprio tomará a iniciativa
de limpar-se, poupando penoso e pesado trabalho à sofrida e incompreendida dona
de casa??...”
-
“Mais ou menos...”
-
“Como (?) – mais ou menos...?”
-
“Sim – veja bem – o material das paredes de seu forno é anti-aderente e
isso, por si só, facilitará a limpeza...”
-
“Afinal, quem limpa quem??”
-
“Ora, cada um limpa seu fogão. Só que este, por suas características
intrínsecas e funcionais tornará mais rápida e amena a tarefa da limpeza”.
-
“Ah, bom. Pensei estar diante de um prodígio que, sem ninguém mandar,
providenciava sua própria higienização logo após a divertida rotina de assados,
gratinados, cozidos, etc”.
-
“Aí a senhora também está querendo demais...”
-
“Não – acho que a propaganda é que está falando demais...”
Mesmo com a discussão (ou
por causa dela) resolveu comprar o fogão.
No fundo,
alimenta a esperança de que a geringonça, de repente, magicamente, como na
história de Gepeto, surpreenda o mundo (e especialmente a cozinheira) e saia
por aí, subvertendo as paralelas da cibernética, assumindo tarefas e funções
nunca dantes cozinhadas. Além de limpar-se, como qualquer mortal decente faria,
reservará para si obrigações outras tais como encomendar (e pagar) seu próprio
gás; arear as panelas; acender-se e apagar-se com discreção na hora certa;
negar-se de cozinhar gorduras saturadas em nome da proteção às coronárias de
seus queridos donos; não permitir que o leite derrame, que o churrasco queime
nem que o souflê se inflame – enfim – um fogão primeiro-mundista, consciente,
providente, competente, digno da tecnologia formalista ( e moralista) que o
concebeu.
O fabricante
terá o cuidado de não apor um rabo no prodígio para que donos mais
distraídos não o confundam com Max, o cachorro bem adestrado da família.
Apesar do
alarido da propaganda, esse fogão-prodígio ainda não está disponível no
mercado. Felizmente! Não será por muito tempo. Logo, logo – no passo em que
vamos – hospedaremos, em nosso lar (nosso reino), genialidade desse tipo.
Pagaremos alto preço por esse progresso. E não, necessariamente, em dinheiro.
Pagaremos o preço da partilha compulsória de nossa autoridade e independência.
Um fogão capaz de tudo isso, numa segunda-feira qualquer, baterá na mesa
exigindo poder de veto em nossas domésticas decisões.
Vai querer
influir na educação das crianças, no penteado da patroa, na gaveta do patrão,
na cor do carro, na marca da televisão, enfim – será um chato de galochas
movido à gás, eletricidade ou o raio que o parta... Seu poder de barganha é
poderosíssimo: - faça-se o que ele quer ou não cozinha... Já imaginaram?...
Antecipo a
cena seguinte dessa solução sem volta. Na beira de uma sanga barrenta, recolhido
ao próprio tédio, vejo o dono de casa, munido de primitivo anzol, tentando
pescar o almoço para, enfim, cozinhá-lo no fogo-fátuo de uma improvisada e
desarranjada fogueira, choramingando o destino da fumaça que entra pelos olhos
e se perde na imensidão...
E viva o
progresso!...
Sejamos
reacionários, enquanto é tempo. Fogão é para cozinhar: relógio é para marcar as
horas; cadeira é para sentar; sofá é para namorar; televisão é para divertir;
carro é para conduzir; vassoura é para varrer; faca é para cortar; cama é para
dormir; camisa é para vestir; cigarro é para fumar; telefone é para comunicar;
estufa é para aquecer; cofre é para guardar; água é para beber; poesia é para
sensibilizar; pente é para pentear; chave é para abrir...
Convenhamos –
chave também serve para fechar. Chave se perde e, muitas vezes, nunca mais se
encontra.
Para que
servem as coisas?...
O tempo
dirá!...
O tempo ou o
computador?...
O que diz o
fogão?...!