sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Erasmo

            Carpinteiro de lei, esbanjava talento em sua arte com madeiras e assemelhados.
         Com as mãos, com os olhos e com a  alma  Erasmo sabia erigir e tornear utensílios maravilhosos. Beleza, estilo e utilidade era o que não faltava aos móveis construídos por esse profissional exemplar. No seu reino, sua pequena oficina, cheia de originalidade e charme, Erasmo impunha sua personalidade e ditava as normas do fazer, pensar e crer.
         Materialista convicto, vizinhando com a descrença absoluta, nosso carpinteiro costumava bater vigorosamente na madeira e questionava: - pinho, guajuvira, cedro, ébano e cadê Deus? Onde está? Eis aqui um branquilho, aquilo é uma coronilha, ali temos acácia e lá dorme um mogno. E Deus onde está?
         Só acredito naquilo que posso tocar, cortar, pregar e colar – costumava dizer, aos brados, na presença de assustados e arregalados clientes.
         A vida é tudo ou somente o que existe aqui, agora e sempre sob o olhar dos homens e a serviço da utilidade e da funcionalidade da existência. Rezar, orar, persignar-se, elucubrar, acreditar, submeter-se, benzer-se, curvar-se era coisa de fracos que nada tinha a ver com o comportamento impositivo dos bravos e dos fortes. Madeira é madeira e Deus o que é? Onde está?
         Tinha ostensiva ojeriza as carolices religiosas e não suportava posturas piegas e subservientes. Nessas questões, sua alma era mais dura do que as madeiras que com inspiração e destreza trabalhava para compor camas, cadeiras, oratórios, bancos, mesas e prateleiras.
         Erasmo não afrouxava a guarda nesses assuntos da emoção. Sua razão estava nos dentes do serrote na cabeça do martelo. E assim viveu por longos tempos.
         De tanto viver e trabalhar um dia envelheceu e adoeceu. Seu médico diletante resolveu colocá-lo no hospital para melhor tratá-lo.
         Lá posto recebeu o atendimento conveniente e assistido por enfermeiros e técnicos sobreviveu por algum tempo.
         Um dia correu a notícia de que a porta de um armário despencara, ruidosamente, sem mais nem menos, provocando transtorno geral. Na visita habitual de seu médico ergueu-se de sua condição moribunda para reclamar que nada tinha a ver com a queda intempestiva da porta do tal armário.
         Que culpassem outros mas não a ele pelo conserto mal feito.
         O médico muito sábio, contemporizou afirmando que, de fato, ele não tinha qualquer culpa no acontecido.
         - Mas como não tenho culpa?
         - Não tem Erasmo. Isso foi apenas um acidente – coisa que acontece ao sabor do tempo e das circunstâncias...
         - E por que então, me aplicam tantas e dolorosas injeções? Não tenho culpa, doutor, não fui eu que fiz esse armário...
         - Calma, Erasmo. Nada é contigo.
         - Melhor assim.
         Tudo teria terminado bem não fora a língua solta de uma enfermeira de plantão, que para dar um basta nas alucinadas indagações de Erasmo, dissera, categoricamente, que tudo isso que estava acontecendo era obra de Deus, do além ou do quem sabe o que.
         - De Deus?
         - Isso mesmo – coisas do além – retemperou a enfermeira.
         - Ah – eu sabia! Um dia esse camarada ia cobrar caro minha negação da sua existência. Isso é vingança! Pura vingança!
         Morreu serenamente dias depois e foi solenemente sepultado com dor e saudade, em um túmulo de concreto mas devidamente aconchegado em um caixão de pinho de riga.
         A bela madeira um dia se consumirá e Deus que destino terá?

         Fala Erasmo! Fala Deus!

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Meu Compadre

Meu compadre é um homem de muitas dimensões: - calmo, reservado na medida do possível e possível na medida dos reservados; um homem vivo, esperto, dono do seu tempo, que sabe fazer apreciações inteligentes e oportunas; sempre sabe o que diz e diz tudo o que sabe; alegre e comunicativo não mede braços num abraço e não conta dedos que não tem. É franco, direto, puro, um  homem de lei! Sabe adoçar as horas mais amargas mas também é mestre em salgar os ambientes mais insossos. Dono de seu nariz – antigo e simpático nariz – que sente de longe o cheiro da mentira e do embuste.
Um sujeito livre por vocação e vocacionado por sua própria liberdade. Nada e ninguém encilha seu coração para esporear seus sentimentos
Acha que as ideologias, as doutrinas, os credos e outras faceirices do pensar e do sentir seriam desnecessárias  em um mundo mais repleto de certezas. Admite que há mais certeza nas coisas que não são do que nas que são. Ele, por exemplo, vive repetindo que, na verdade, não sabe bem o que é, o que sabe, o que tem e o que pretende, mas é capaz de saber de cor o que não é, o que não sabe, o que não tem e o que não deseja. Comenta, laconicamente, que para ser assim é preciso uma boa dose de humildade. Meu compadre não ostenta a chamada “falsa modéstia”.
Dia desses, provocado por um furioso e voluntarioso grupo moralista, instado a opinar sobre generalidades do mundo e dos mundanos, tais como livre-arbítrio, e outros quetais do gênero, falou firme e forte derramando sinceridade: - disse, só para citar, que o perdão é desnecessário onde não existe culpa; que não há licenças concedidas onde não há proibições; que não vê razão para justificar a bonança com a ameaça de temporais; que os remendos e os remendeiros são inúteis em um mundo sem rupturas. Que não é preciso confissões quando não há segredos e não há segredos onde não existem medos. E sem medos, para que preces?
Que é absolutamente sem sentido a “salvação” quando não há condenação. Que seria por demais gratificante se nosso denominado “livre arbítrio” nos guindasse a um mundo sem perdões, bonanças, remendos, confissões e preces de salvação porque assim, então, não teríamos as culpas, as rupturas, os temporais, os segredos, os medos, as condenações e uma porção de outras “cositas” que fazem da humanidade esse poço de piedade, lágrimas e escravidão.
Apesar de tudo acredita no mundo e nas pessoas. Acredita, fundamentalmente, em si mesmo. Filosofando costuma dizer que o mundo, porque é redondo, é uma realidade singela onde os extremos forçosamente um dia se tocam e por isso mesmo, todos chegaremos finalmente ao mesmo porto. Daí porque não devemos aceitar o  cabresto que nos força seguir para um lado só, em busca da felicidade.
Estou para ver homem de maior tino que o meu compadre. Nunca perde as estribeiras e sempre sabe achar o fio da meada. É a favor da vida e da sanidade. Crê na bondade, na gratidão e na dignidade das pessoas. Defende a igualdade de oportunidades e está sempre disposto a lutar, de camisa aberta, por causas que julga justas. E sobre “justiça” prefere agir mais do que falar, mas previne, dizendo que o “direito” pode promover a tolerância mas não necessariamente a amizade entre os homens.
Meu compadre é um mar de sabedoria e paciência. Sua fé, sua alegria e sua esperança são contagiantes. Seu passatempo preferido, em sua “cadeira de rodas” é tentar passar camelos em diminutos buracos de agulhas.
Ocupa seu precioso tempo nessa sutil tentativa, mas reclama, tempestivamente, pelo progressivo, inexorável (e inexplicável) aumento dos buracos...
Se não fosse cego, escolheria ser crítico de cinema, profissionalmente, e astrônomo nas horas vagas.
Gosto demais do meu compadre!
Amanhã mesmo farei um agrado a esse amigo: - mandarei a ele uma farta porção daquelas amêndoas que nasceram e cresceram na laranjeira lá do fundo do quintal...
E você que agrado seria capaz de proporcionar ao meu compadre?

Hein?

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O que é isso, Barreiro?

           Bons tempos aqueles em que se podia confiar no tempo. Naquela época o inverno vinha no inverno, o verão no verão, e assim por diante. Mas, hoje...(?)!... quem pode confiar??
            Vivemos o auge do tempo dos fenômenos. Há um clima estranho no ar e vice-versa.
Dia desses, vi algo inusitado (para mim) e, de certa forma, preocupante:  um “barreiro” fazendo sua casa no chão e na beira de uma sanga.
Pelo que sei – (será que sei?), barreiro é um bicho que voa e não morre de amores por água. Mesmo assim tentava erigir seu castelo bem na planície, ao sabor das inundações e dos charcos especiais. Que razões terá para assim se comportar! Por que muda seus hábitos? O que é isso, barreiro?
Você, um competente e inspirado construtor que sempre ergueu sua casa em lugares altos, “seguros”, práticos e funcionais – agora, sem um motivo aparente, resolve eleger o patamar das formigas, das cobras, das lagartixas, etc..., por que? O que é isso?
E percebam a contradição, o paradoxo, o absurdo. No tempo em que o barreiro fazia sua casinha no ápice dos postes, no travessão das porteiras e na cumieira dos galpões tinha os “pés no chão”.
Mostrava coerência e boa conveniência com seus conhecidos e costumeiros comandos intuitivos. Mas agora que põe os pés no chão, sem senso crítico, perde pêlo e sua decisão perde critério, oportunidade e sentido... Sentido? Oportunidade? Inundação?
Em tempo – Alguém mais experiente me socorre, informando que o barreiro não enlouqueceu nem está querendo liderar a nau dos amotinados. Dizem os entendidos que o barreiro está, isto sim, sendo mensageiro das decisões e diretrizes do governo natural. Há quem jure que o barreiro “sabe” que não vai chover tão logo e por isso não teme levantar seu barraco nos rés do chão, bem na beira da sanga. Será? É muito provável!
O barreiro pode estar errado? Até pode – dizem os técnicos. Por sensibilidade ou outra limitação do gênero, bem pode que o “barreirinho” tenha lido mal o recado da mãe natureza.
E terá sido um pequeno engano, sempre involuntário, de parte a parte. A natureza jamais mente para si própria. E o barreiro é pena de sua vasta asa, portanto, sabe o que se passa no coração dos prognósticos naturais, salvo, como disse, rápidos enganos. No fundo, o barreiro sabe que a natureza sabe  que o barreiro sabe que a natureza sabe e faz. Existe uma cega confiança mútua.
Se a natureza disse que não vai chover tão logo, por que não levantar um belo recanto onde a água não chegará?
Se a natureza falou – tá falado. Salvo melhor juízo, o homem pode confiar no barreiro. E o barreiro pode confiar no homem?
E por que não? E por que não?...