Carpinteiro de lei,
esbanjava talento em sua arte com madeiras e assemelhados.
Com as mãos, com os olhos e com a alma
Erasmo sabia erigir e tornear utensílios maravilhosos. Beleza, estilo e
utilidade era o que não faltava aos móveis construídos por esse profissional
exemplar. No seu reino, sua pequena oficina, cheia de originalidade e charme,
Erasmo impunha sua personalidade e ditava as normas do fazer, pensar e crer.
Materialista convicto, vizinhando com a descrença absoluta,
nosso carpinteiro costumava bater vigorosamente na madeira e questionava: -
pinho, guajuvira, cedro, ébano e cadê Deus? Onde está? Eis aqui um branquilho,
aquilo é uma coronilha, ali temos acácia e lá dorme um mogno. E Deus onde está?
Só acredito naquilo que posso tocar, cortar, pregar e colar
– costumava dizer, aos brados, na presença de assustados e arregalados clientes.
A vida é tudo ou somente o que existe aqui, agora e sempre
sob o olhar dos homens e a serviço da utilidade e da funcionalidade da existência.
Rezar, orar, persignar-se, elucubrar, acreditar, submeter-se, benzer-se,
curvar-se era coisa de fracos que nada tinha a ver com o comportamento impositivo
dos bravos e dos fortes. Madeira é madeira e Deus o que é? Onde está?
Tinha ostensiva ojeriza as carolices religiosas e não
suportava posturas piegas e subservientes. Nessas questões, sua alma era mais
dura do que as madeiras que com inspiração e destreza trabalhava para compor
camas, cadeiras, oratórios, bancos, mesas e prateleiras.
Erasmo não afrouxava a guarda nesses assuntos da emoção. Sua
razão estava nos dentes do serrote na cabeça do martelo. E assim viveu por
longos tempos.
De tanto viver e trabalhar um dia envelheceu e adoeceu. Seu
médico diletante resolveu colocá-lo no hospital para melhor tratá-lo.
Lá posto recebeu o atendimento conveniente e assistido por
enfermeiros e técnicos sobreviveu por algum tempo.
Um dia correu a notícia de que a porta de um armário
despencara, ruidosamente, sem mais nem menos, provocando transtorno geral. Na
visita habitual de seu médico ergueu-se de sua condição moribunda para reclamar
que nada tinha a ver com a queda intempestiva da porta do tal armário.
Que culpassem outros mas não a ele pelo conserto mal feito.
O médico muito sábio, contemporizou afirmando que, de fato,
ele não tinha qualquer culpa no acontecido.
- Mas como não tenho culpa?
- Não tem Erasmo. Isso foi apenas um acidente – coisa que
acontece ao sabor do tempo e das circunstâncias...
- E por que então, me aplicam tantas e dolorosas injeções?
Não tenho culpa, doutor, não fui eu que fiz esse armário...
- Calma, Erasmo. Nada é contigo.
- Melhor assim.
Tudo teria terminado bem não fora a língua solta de uma enfermeira
de plantão, que para dar um basta nas alucinadas indagações de Erasmo, dissera,
categoricamente, que tudo isso que estava acontecendo era obra de Deus, do além
ou do quem sabe o que.
- De Deus?
- Isso mesmo – coisas do além – retemperou a enfermeira.
- Ah – eu sabia! Um dia esse camarada ia cobrar caro minha
negação da sua existência. Isso é vingança! Pura vingança!
Morreu serenamente dias depois e foi solenemente sepultado
com dor e saudade, em um túmulo de concreto mas devidamente aconchegado em um
caixão de pinho de riga.
A bela madeira um dia se consumirá e Deus que destino terá?
Fala Erasmo! Fala Deus!