quinta-feira, 23 de maio de 2013

A geringonça


Alguém já recebeu um presente que não sabe exatamente para que serve?
Pois aconteceu com o Jarbas. Agradeceu efusivamente, o mimo repetindo  o tradicional lugar comum: “não precisava se incomodar” – desembrulhou e, meio sem jeito, completou: “que maravilha, não mereço tanto...”
Do mais fundo da alma indagou mudamente para si próprio: “o que é isto (?) – para que serve (?)”
Era uma geringonça cheia de pontas e arabescos, ostentando números e gráficos, encimada por ponteiros e sinalizadores que, de fato, não davam a menor pista de sua real utilidade. Examinando melhor, identificou algo que poderia indiciar a presença de uma bússola. Uma bússola? Isso mesmo – esse aparato mágico que tanto serviu (e serve) a heroicos navegadores e agora, poderia, milagrosamente indicar um norte em sua atual e tormentosa procela de dúvidas.
Mas e as outras porções da coisa o que seriam? Aquele relógio farto de números e escalas, o que seria? Um verificador/transferidor do mapa astral? Uma representação alfa-numérica da vida? Da vida que falta ou a que já foi? E o pior é que a “coisa” veio sem bula, sem catálogo, sem prospecto, sem programa, sem roteiro, sem nada.
O presenteador deu tiro de misericórdia, dizendo alegremente: “quando vi me lembrei de ti e achei que apreciarias”...
“Ah – claro que sim – apreciadíssimo – será de grande utilidade”... Utilidade?
Risadas, reverências, tapinhas, longos abraços mas nada de positivo acontecia naquele istmo da total e absoluta incompreensão relacional daquele aniversário.
O que era aquilo? Para que serviria?
Um outro relógio expunha números de zero a cinquenta e com boa vontade sugeria a presença de um termômetro. Seria isso? Se fosse, o mundo, a vida, a causa, o passado e o presente não estariam definitivamente perdidos. Uma luz no fim do túnel tinha boa chance de não ser apenas um trem desvairado no sentido contrário. Eis um termômetro! Utilíssimo nesses tempos malucos de um clima alucinado que nos impõe resfriados fora de época. Belo presente.
E o terceiro relógio? Que coisa bem complexa cheio de escalas contraditórias e aparentemente excludentes, com vários ponteiros, sem ação espontânea, ali inerte, desafiando a escorreita teoria da relatividade, o que seria?
Seria o aferidor da felicidade humana? Seria o marcador da glória das conquistas pessoais? Seria o referencial do bom senso? Ou seria o referencial do imenso e nem sempre reconhecido talento artístico-literário de pessoas comuns como o Jarbas, seu vizinho, e ou o irmão de sua lavadeira e por aí vai (?)
Não se sabe! Só se sabe que essa geringonça foi o melhor presente que Jarbas recebeu em seu aniversário.
Até hoje o intrigante mimo o faz pensar, sonhar, esperançar e acima de tudo acreditar que a vida deve ser apenas vivida, sem muita explicação. Os presentes são sempre bem-vindos, venham de onde vierem, sirvam para o que servirem. Pelo sim, pelo não Jarbas pôs a geringonça no bolso e nunca mais precisou explicar nada para ser feliz. Melhor dito – indecifravelmente feliz...
De vez em quando tira a coisa do bolso e fica mirando-a como se ali estivesse de fato o vértice da vida e do mundo. Continua sem saber para que serve, mas sabe para o que não serve. Sabe? Estranhamente com esse artefato no bolso não mais se sentiu sozinho neste vale cheio de lágrimas...
Grande presente! Todo o mundo, um dia, mereceria ganhar um.