Certa feita, passeando atoamente, em uma cidade do interior
uruguaio, bati numa circunstância quase surrealista.
Na porta de
uma casa comercial especializada em artigos de caça e pesca, o proprietário
vociferava com seu cachorro, um pitbull bem fornido, impondo comportamento
social-amistoso, através de severo discurso, recomendando bons modos,
especialmente com os clientes.
Gosto de
cães mas tenho lá minhas reservas em relação a animais potencialmente perigosos
pela compleição e origem. Era o caso – o cachorrão tinha todas as
características de um exterminador do passado, do presente e do futuro. Suas
mandíbulas e suas manoplas não desmentiam tal possibilidade.
Mais que
isso – sua índole, seu bafo, seus dentes, seu olhar diabólico rondando as
pernas ou algo mais dos assustados circunstantes não deixava dúvida sobre o
iminente perigo.
Mas o dono
não economizava latim em sua peroração, exigindo calma e obediência geral. Dava
para entender que a voz de comando do proprietário era nosso salvo-conduto. Não
se sabia até onde ou até quando...?
Quando o
animal, enfim, caiu de bruços, à força de muito grito, sentimos que o caso
tinha achado seu eixo de harmonia e paz. Para alívio de todos, a fera tinha, em
boa hora, ocupado seu modesto e singelo lugar de simples animalzinho de
estimação cuja simpatia e mansidão comovia a todos.
Mas
recapitulemos: - as ordens ao cãozinho tinham sido proferidas em forte, audível
e original castelhano. Em outro idioma esse bicho teria compreendido, aceito e
respeitado recomendações de ordem e disciplina?
Tenho lá
minhas fundadas convicções que não.
Para nós
brasileiros até que a coisa poderia ser contornada sem grandes percalços.
Afinal espanhol e português são línguas irmãs de origem e se fazem valer pela
semelhança de sons e identidade idiomática.
Porque,
pensando bem, se o diletante dono do pitbull não tivesse a determinada e
vigorosa iniciativa de conter o ímpeto de “seu melhor amigo”, ainda assim
teríamos o derradeiro recurso de bravejar em claro português, uma ordem
decisiva (e defensiva) do “já pra lá”, “larga”, “sai daqui”, como último apelo
salvador.
Está visto e provado, portanto, que
os cães uruguaios tem boa chance de nos entenderem e nós de sobrevivermos.
Já não se
pode dizer o mesmo, penso eu, se o fato em causa, ocorrer na Dinamarca, por
exemplo.
Como dar
ordens de “basta”, “sai daqui”, “volta” e “larga” em dinamarquês? Quem de nós
tem na ponta da língua tal performance linguística?
No susto até
milagres do tipo acontecem. Mas a estatística não nos autoriza nada além da
exceção. Podem crer!
E se o
cachorro for de convivência alemã, ou sueca, ou simplesmente da Ucrania? E aí?
Que chance teremos nós, simples
turistas, para debelar o ataque de uma criatura dessas, que só entende e
respeita ordens pronunciadas em seu idioma de origem? Pouca ou nenhuma –
acreditem.
Poderíamos
experimentar o inglês, quem sabe, disseminado como ferramenta de comunicação
planeta a fora. A tentativa será válida tanto quanto a valentia e soberba do
sapo, já meio engolido pela sucuri, que do alto de seu orgulho conseguiu
pronunciar: “não está morto quem peleia”.
Mas não nos
deixemos enganar: - cães são fiéis guardiões de suas origens e não se deixam
iludir por conversas diplomático-universalistas de efeito
político-imperialista.
Quem sabe,
então, o aramaico (?) que segundo a história era o idioma de Cristo – o rei dos
reis? Será que os cães bravos do mundo, de qualquer idioma, entenderão esse
chamado teológico?
Tenho lá
minhas dúvidas.
E o
“esperanto”, a língua universal, quem sabe não seja o caminho para o
adestramento e dominação desses maiores e melhores inimigos de estranhos?
Conjecturas!
Apenas isso.
Os cães tem
seus entendimentos próprios em seus respectivos idiomas e salve-se quem puder
ou, por ventura tiver a virtude de um Carlos Freire, que se expressa lépida e satisfatoriamente até em línguas já
mortas.
Salve-se
quem puder dando um generoso pontapé no bicho em nome da integridade física,
moral e espiritual, como último e desesperado recurso de sobrevivência. Mas ninguém há de querer e de se satisfazer com atitude tão radical. Até porque somos
genuinamente caridosos e insofismáveis protetores do reino animal. Somos?
Se o
cachorro não entender tua linguagem, entenda a dele, e faça um carinho no
bicho, distribua afagos, passe a mão em sua testa e em seu dorso amigavelmente .
A linguagem
do amor vence sempre. Se não vencer, recorra então a atitudes globalizadas
desde longas datas: - corra ou morra.
Como morrer
ninguém quer antes da hora ou por motivo torpe, cante e espante os males do
mundo, como manda o provérbio.
Está visto e
provado que provérbio não mata nem salva ninguém definitivamente – assim late a
história – use então sua arma secreta e conclusiva: acoe e rosne, sem parar.
Sua vida te
afagará, pelo resto dos dias, pode crer.