sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Erasmo

            Carpinteiro de lei, esbanjava talento em sua arte com madeiras e assemelhados.
         Com as mãos, com os olhos e com a  alma  Erasmo sabia erigir e tornear utensílios maravilhosos. Beleza, estilo e utilidade era o que não faltava aos móveis construídos por esse profissional exemplar. No seu reino, sua pequena oficina, cheia de originalidade e charme, Erasmo impunha sua personalidade e ditava as normas do fazer, pensar e crer.
         Materialista convicto, vizinhando com a descrença absoluta, nosso carpinteiro costumava bater vigorosamente na madeira e questionava: - pinho, guajuvira, cedro, ébano e cadê Deus? Onde está? Eis aqui um branquilho, aquilo é uma coronilha, ali temos acácia e lá dorme um mogno. E Deus onde está?
         Só acredito naquilo que posso tocar, cortar, pregar e colar – costumava dizer, aos brados, na presença de assustados e arregalados clientes.
         A vida é tudo ou somente o que existe aqui, agora e sempre sob o olhar dos homens e a serviço da utilidade e da funcionalidade da existência. Rezar, orar, persignar-se, elucubrar, acreditar, submeter-se, benzer-se, curvar-se era coisa de fracos que nada tinha a ver com o comportamento impositivo dos bravos e dos fortes. Madeira é madeira e Deus o que é? Onde está?
         Tinha ostensiva ojeriza as carolices religiosas e não suportava posturas piegas e subservientes. Nessas questões, sua alma era mais dura do que as madeiras que com inspiração e destreza trabalhava para compor camas, cadeiras, oratórios, bancos, mesas e prateleiras.
         Erasmo não afrouxava a guarda nesses assuntos da emoção. Sua razão estava nos dentes do serrote na cabeça do martelo. E assim viveu por longos tempos.
         De tanto viver e trabalhar um dia envelheceu e adoeceu. Seu médico diletante resolveu colocá-lo no hospital para melhor tratá-lo.
         Lá posto recebeu o atendimento conveniente e assistido por enfermeiros e técnicos sobreviveu por algum tempo.
         Um dia correu a notícia de que a porta de um armário despencara, ruidosamente, sem mais nem menos, provocando transtorno geral. Na visita habitual de seu médico ergueu-se de sua condição moribunda para reclamar que nada tinha a ver com a queda intempestiva da porta do tal armário.
         Que culpassem outros mas não a ele pelo conserto mal feito.
         O médico muito sábio, contemporizou afirmando que, de fato, ele não tinha qualquer culpa no acontecido.
         - Mas como não tenho culpa?
         - Não tem Erasmo. Isso foi apenas um acidente – coisa que acontece ao sabor do tempo e das circunstâncias...
         - E por que então, me aplicam tantas e dolorosas injeções? Não tenho culpa, doutor, não fui eu que fiz esse armário...
         - Calma, Erasmo. Nada é contigo.
         - Melhor assim.
         Tudo teria terminado bem não fora a língua solta de uma enfermeira de plantão, que para dar um basta nas alucinadas indagações de Erasmo, dissera, categoricamente, que tudo isso que estava acontecendo era obra de Deus, do além ou do quem sabe o que.
         - De Deus?
         - Isso mesmo – coisas do além – retemperou a enfermeira.
         - Ah – eu sabia! Um dia esse camarada ia cobrar caro minha negação da sua existência. Isso é vingança! Pura vingança!
         Morreu serenamente dias depois e foi solenemente sepultado com dor e saudade, em um túmulo de concreto mas devidamente aconchegado em um caixão de pinho de riga.
         A bela madeira um dia se consumirá e Deus que destino terá?

         Fala Erasmo! Fala Deus!

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Meu Compadre

Meu compadre é um homem de muitas dimensões: - calmo, reservado na medida do possível e possível na medida dos reservados; um homem vivo, esperto, dono do seu tempo, que sabe fazer apreciações inteligentes e oportunas; sempre sabe o que diz e diz tudo o que sabe; alegre e comunicativo não mede braços num abraço e não conta dedos que não tem. É franco, direto, puro, um  homem de lei! Sabe adoçar as horas mais amargas mas também é mestre em salgar os ambientes mais insossos. Dono de seu nariz – antigo e simpático nariz – que sente de longe o cheiro da mentira e do embuste.
Um sujeito livre por vocação e vocacionado por sua própria liberdade. Nada e ninguém encilha seu coração para esporear seus sentimentos
Acha que as ideologias, as doutrinas, os credos e outras faceirices do pensar e do sentir seriam desnecessárias  em um mundo mais repleto de certezas. Admite que há mais certeza nas coisas que não são do que nas que são. Ele, por exemplo, vive repetindo que, na verdade, não sabe bem o que é, o que sabe, o que tem e o que pretende, mas é capaz de saber de cor o que não é, o que não sabe, o que não tem e o que não deseja. Comenta, laconicamente, que para ser assim é preciso uma boa dose de humildade. Meu compadre não ostenta a chamada “falsa modéstia”.
Dia desses, provocado por um furioso e voluntarioso grupo moralista, instado a opinar sobre generalidades do mundo e dos mundanos, tais como livre-arbítrio, e outros quetais do gênero, falou firme e forte derramando sinceridade: - disse, só para citar, que o perdão é desnecessário onde não existe culpa; que não há licenças concedidas onde não há proibições; que não vê razão para justificar a bonança com a ameaça de temporais; que os remendos e os remendeiros são inúteis em um mundo sem rupturas. Que não é preciso confissões quando não há segredos e não há segredos onde não existem medos. E sem medos, para que preces?
Que é absolutamente sem sentido a “salvação” quando não há condenação. Que seria por demais gratificante se nosso denominado “livre arbítrio” nos guindasse a um mundo sem perdões, bonanças, remendos, confissões e preces de salvação porque assim, então, não teríamos as culpas, as rupturas, os temporais, os segredos, os medos, as condenações e uma porção de outras “cositas” que fazem da humanidade esse poço de piedade, lágrimas e escravidão.
Apesar de tudo acredita no mundo e nas pessoas. Acredita, fundamentalmente, em si mesmo. Filosofando costuma dizer que o mundo, porque é redondo, é uma realidade singela onde os extremos forçosamente um dia se tocam e por isso mesmo, todos chegaremos finalmente ao mesmo porto. Daí porque não devemos aceitar o  cabresto que nos força seguir para um lado só, em busca da felicidade.
Estou para ver homem de maior tino que o meu compadre. Nunca perde as estribeiras e sempre sabe achar o fio da meada. É a favor da vida e da sanidade. Crê na bondade, na gratidão e na dignidade das pessoas. Defende a igualdade de oportunidades e está sempre disposto a lutar, de camisa aberta, por causas que julga justas. E sobre “justiça” prefere agir mais do que falar, mas previne, dizendo que o “direito” pode promover a tolerância mas não necessariamente a amizade entre os homens.
Meu compadre é um mar de sabedoria e paciência. Sua fé, sua alegria e sua esperança são contagiantes. Seu passatempo preferido, em sua “cadeira de rodas” é tentar passar camelos em diminutos buracos de agulhas.
Ocupa seu precioso tempo nessa sutil tentativa, mas reclama, tempestivamente, pelo progressivo, inexorável (e inexplicável) aumento dos buracos...
Se não fosse cego, escolheria ser crítico de cinema, profissionalmente, e astrônomo nas horas vagas.
Gosto demais do meu compadre!
Amanhã mesmo farei um agrado a esse amigo: - mandarei a ele uma farta porção daquelas amêndoas que nasceram e cresceram na laranjeira lá do fundo do quintal...
E você que agrado seria capaz de proporcionar ao meu compadre?

Hein?

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O que é isso, Barreiro?

           Bons tempos aqueles em que se podia confiar no tempo. Naquela época o inverno vinha no inverno, o verão no verão, e assim por diante. Mas, hoje...(?)!... quem pode confiar??
            Vivemos o auge do tempo dos fenômenos. Há um clima estranho no ar e vice-versa.
Dia desses, vi algo inusitado (para mim) e, de certa forma, preocupante:  um “barreiro” fazendo sua casa no chão e na beira de uma sanga.
Pelo que sei – (será que sei?), barreiro é um bicho que voa e não morre de amores por água. Mesmo assim tentava erigir seu castelo bem na planície, ao sabor das inundações e dos charcos especiais. Que razões terá para assim se comportar! Por que muda seus hábitos? O que é isso, barreiro?
Você, um competente e inspirado construtor que sempre ergueu sua casa em lugares altos, “seguros”, práticos e funcionais – agora, sem um motivo aparente, resolve eleger o patamar das formigas, das cobras, das lagartixas, etc..., por que? O que é isso?
E percebam a contradição, o paradoxo, o absurdo. No tempo em que o barreiro fazia sua casinha no ápice dos postes, no travessão das porteiras e na cumieira dos galpões tinha os “pés no chão”.
Mostrava coerência e boa conveniência com seus conhecidos e costumeiros comandos intuitivos. Mas agora que põe os pés no chão, sem senso crítico, perde pêlo e sua decisão perde critério, oportunidade e sentido... Sentido? Oportunidade? Inundação?
Em tempo – Alguém mais experiente me socorre, informando que o barreiro não enlouqueceu nem está querendo liderar a nau dos amotinados. Dizem os entendidos que o barreiro está, isto sim, sendo mensageiro das decisões e diretrizes do governo natural. Há quem jure que o barreiro “sabe” que não vai chover tão logo e por isso não teme levantar seu barraco nos rés do chão, bem na beira da sanga. Será? É muito provável!
O barreiro pode estar errado? Até pode – dizem os técnicos. Por sensibilidade ou outra limitação do gênero, bem pode que o “barreirinho” tenha lido mal o recado da mãe natureza.
E terá sido um pequeno engano, sempre involuntário, de parte a parte. A natureza jamais mente para si própria. E o barreiro é pena de sua vasta asa, portanto, sabe o que se passa no coração dos prognósticos naturais, salvo, como disse, rápidos enganos. No fundo, o barreiro sabe que a natureza sabe  que o barreiro sabe que a natureza sabe e faz. Existe uma cega confiança mútua.
Se a natureza disse que não vai chover tão logo, por que não levantar um belo recanto onde a água não chegará?
Se a natureza falou – tá falado. Salvo melhor juízo, o homem pode confiar no barreiro. E o barreiro pode confiar no homem?
E por que não? E por que não?...


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Los dolares...

Certa feita fui buscar, no vizinho Uruguai, um lugar ao sol. Procurei na universidade de direito da pátria irmã, um espaço de luta por ideais humanistas.
Na entrada do prédio topei com uma proposição contundente mas na minha opinião justa e procedente. Um cartaz em letras garrafais dizia: “los dolares que sobran es la libertad que falta”.
Naquele tempo os acirramentos ideológicos iam bem além da pele. Direita e esquerda duelavam sem sossego em um cenário dominado imperativamente por russos e americanos. E a massa de manobra nessa tempestade era, inevitavelmente, a juventude estudantil.
Nesse embate valia tudo! De um lado a famosa “aliança para o progresso” e de outro a utopia comunista com “o povo no poder”.
No débito das propostas respectivas impunham-se o muro de Berlim, um escândalo de arbitrariedade, e a tolerância com regimes ligeiramente autoritários esparramados nas chamadas repúblicas das bananas, onde figurava fagueiramente o Brasil. Igualmente um abuso na visão do humanismo universal, conceito impregnante de muitas consciências alegremente juvenis. As escolhas eram romanticamente adolescentes mas os comportamentos massivos eram compulsoriamente deslocados desse fulcro. Na prática e na ação não era permitido frequentar a independência de ideias. Era forçoso empreender uma posição de confronto e assumir uma atitude impositiva.
De um lado os comunistas – de outro os outros.
E assim tecíamos nosso cotidiano dos sonhos sociais.
A dialética era pão comum na vida dessa juventude cheia de hormônios em prol do bem para todos. Idealizar era a moeda forte dessa gurizada impetuosa sem internet, sem cocaína, sem televisão e sem os entorpecentes do conforto histórico/existencial. Nossa luta era aberta, frontal e sem anestesias. Nosso confrontos não eram no grito: - debatíamos no terreno das ideias. Mas, é honesto dizer, que nos sobrava pouco espaço para pregar e preconizar uma terceira via.
O chamado alinhamento era praticamente obrigatório.
De um lado o comunismo da potente União Soviética e de outro o vigor e a abundância do poder capitalista. Morrer guilhotinados ou enforcados? Que escolha justa nos propunha o mundo?
Brigar, sofrer, sucumbir era o que a realidade de então nos impunha optar.
Sem outra a saída fizemos, tempestivamente, nossas escolhas heroicas e jamais nos sentimos acossados pelos aterrorizantes fantasmas dessa circunstância.
Pregamos, de peito aberto, com camisas desfraldadas, comunismo e capitalismo querendo, desejando e sinceramente propugnando o bem de todos, sem distinção de raça, condição econômica, credo, nacionalidade e opção política. É da natureza do jovem querer, aqui, agora e sempre, tudo para todos, como se o mundo um paraíso fosse, disponível a quem quiser ser feliz.
No entanto, apesar de todas as projeções, e em que pese as mais imarcescíveis intenções, continuamos questionando: - “dos dois lados sobram dólares para solapor a liberdade dos verdadeiros idealistas”.

Nesse contexto a idealização dos genuínos libertários ainda não foi deveras e plenamente satisfeita. E, afinal quando será?   

Calças enxutas

Diz um sábio provérbio português que: “não se pega trutas com calças enxutas”.
O dito luso é molhadamente verdadeiro.
Quem quer  o que quer tem que fazer algum sacrifício para tanto.
Salvo caprichos da sorte, tão raros e rigorosamente casuais, as benesses da vida não caem cotidianamente como chuva serena e limpa. É preciso trabalho e esforço para conquistá-las.
Atirar anzóis a água e simplesmente esperar que neles se prendam, como vítimas inermes, as vantagens da vida é aposta prá lá de presunçosa.
E sempre se pagará caro por tal expectativa!
Quem quer crescer terá que forçosamente empreender alguma iniciativa nesse sentido: - saltar, romper os próprios limites, sobrelevar-se, enfim alguma coisa terá que provocar o normal para que o intento construa seu grande momento, fora do contexto.
De calças secas jamais se conseguirá fisgar o feixe de nossa pretensão.
Essa conduta proativa está em tudo o que se quer, de fato, para satisfazer nossa necessidade de vencer.
Não basta imaginar – é preciso pegar o touro a unhas e dentes e vencê-lo na arena das vontades e das possibilidades.
Pegar trutas de calças enxutas é puro onirismo no mundo das positividades, existenciais, cada vez mais insinuante e cobrador nestes tempos da competividade compulsória.
Se alguém quer o que quer e tem plausíveis razões (e merecimentos) para tanto, que molhe suas calças, aqui e já, sem receios e caprichosos comedimentos.
Para os que verdadeiramente querem a hora é essa. Aos outros a morbidez da inércia, do medo e da passividade.
Até a sorte escolhe os que escolhem o enfrentamento e o risco. Molhe, portanto, suas calças, e terá boas chances de pescar trutas e tudo o mais que se esconde nas águas profundas da vivência.
E para não ficar atrás os gregos também dizem, sob o embalo do mesmo ânimo, que “gato de luvas não pega ratos”...
Portanto... pense, aja, arrisque.

Molhe as calças – tire as luvas e conquiste sua parte justa neste vale cheio de lágrimas...

Decisões

Conviver com a incompreensão é flagelo inevitável para os que escolhem viver sob o império da decisão. Decidir é objetivar.
Decisão é comportamento eivado de riscos que exige sacrifício e coragem acima da média.
Só, de fato, decide quem tem a ousadia de assumir escolhas. Decide quem escolhe viver e morrer sob a alça de mira da crítica, do rancor, da leivosia, do desamor, do ranço e da maledicência dos que não logram imediatistas vantagens pessoais em tais decisões.
Daí a incompreensão. Mais que isso – daí a reação egoísta que nem ao menos sobreleva motivações e circunstâncias porque, necessariamente deslocadas do fulcro umbigal dos insatisfeiros. E por isso a incompreensão – sem argumento, sem fundamento, sem senso e sem razão.
Este é o mundo – assim é a convivência no universo dos egoísmos desmesurados.

Remédio para isso? De fato não existe no plano mortal. Alguma esperança sobrevive, quando os contornos  de nossa vivência transcendem os muros de nossa insignificância humana. Aí se compreende, se perdoa, e se resigna lamentavelmente tarde. Fazer o que?

Teóricos

        Vocês já repararam que os “teóricos” de caderno – aqueles de chapéu, guarda-chuva e galochas – uns verdadeiros chatos assumidos – tem solução para tudo no embrulhado fornel de suas elocubradas teorizações (?)
           Já repararam?
         Pois os dito cujos existem e se manifestam lépida e fagueiramente para flagelo de todos nós.
         Todos sabemos que a teoria na prática é sempre outra. Mas os teóricos obsessivo-compulsivos fazem questão de não saber.
         E nessa alucinação procriam verdadeiros buracos-negros na relação do querer e do poder da intenção e da possibilidade, do desejo e de sua exequibilidade, e assim por diante.
         Quando abordo esse tema sempre me lembro da história do pescador que estendeu redes, iscou anzóis, armou arapucas e mesmo assim nem um mísero peixe pescou para o jantar. A teoria estava rigorosamente correta mas a prática foi desmacha-prazer.
         Faltou combinar com os peixes...
         Me conta um amigo que em uma mesa de pôquer um jogador tinha em mãos dois ases e uma trinca de iguais. Jogo alto para limpar a banca. Mas um dos adversários tinha um revólver carregado e pouca vontade de perder.
         Teoricamente tudo certo para o jogador dos ases mas na prática o resultado foi bem outro.
         Quando a Apolo 11 singrou os ares e teoricamente tinha tudo para conquistar o espaço, aprofundando a ciumeira na famosa guerra fria entre americanos e russos, a prática safadamente, procriou fato adverso e tudo voltou a estaca zero nesse embate técnico-político, de repercussão mundial.
         Tanto é verdade que a prática sempre se impôs a teoria, que o vetusto e genial Newton precisou que uma maçã lhe achatasse a cabeça para conceber a lei da gravidade.
         Ora pois, então, não me venham os teóricos de ofício, com suas elocubrações fantasiosas para fazer valer o que pensam sem as devidas provações na prática.
         Teoricamente ser feliz é simples. Na prática, porém, a história é bem outra, podem crer.
         A teoria diz que juntar moedas faz a riqueza. Na prática, gastar moedas faz o investimento. Quem tem razão?
         Gastar ou economizar?
         A economia é teórica. A gastança é prática.
         Quem tem razão?       
         Economizar é preciso. Gastar é inevitável.
         Um acordo providente entre teoria e prática se impõe: - sejamos teóricos enquanto possível e práticos sempre que necessário.

         E salvem-se os teóricos enquanto a prática não os degole – para sempre. 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Beliscão sem dor

Finamente acomodados no recôndito da mais funda sabedoria, lá estavam os notáveis em volta de uma mesa de reuniões, mas especialmente unidos em torno de uma grande ideia: - conceber, sistematizar e editar o beliscão sem dor.  Esse era o maior desafio no limiar do terceiro milênio.
Dor sem beliscão já existia há tempos. Era preciso, portanto, inverter a lógica comezinha.
Para tudo dar certo seria decisivo começar-se do início. O que é dor? Em quantas partes se divide? Onde, como, quando e por que ocorre? A dor é igual a dor? E o beliscão? Qual seu princípio ativo? Quais as variantes e as sub-espécies? Onde é mais usual? Por que? Há beliscões que a própria razão desconhece? Quantos são? Onde se reúnem??
A fúria analítica tinha, de fato, incorporado na reunião e a coisa estava, assim, muito bem encaminhada. Pelo andar da carreta, firme e demolidor, é certo que não ficaria conceito sobre conceito, depois desse estrebuchamento filosófico.
- A dor é fina – disse o magrinho de óculos Ray-ban.
- Logo ela também é grossa – atravessou o topetudo e bolachudo que ostentava uma gravata serpentiforme.
- Se permitem os colegas – interferiu Vilvinho, coberto de rendas – devo dizer que existe a dor média, então.
- Fina, grossa ou média, o que é, afinal essa tal de dor?? – perguntou Rosalino, branco e gordo de tanto escritório.
- Eis a questão... – comentou Porfírio, que não parava de beber aquele café trazido de casa.
- Este é mais um dos insondáveis mistérios que vagueia por este mundo sem dono – sentenciou o semi-místico do grupo, charutando compulsivamente (ou convulsivamente...)
- Acho de bom alvitre passarmos para o outro termo da equação – sugeriu o vetusto professor Senzala.
- Isso, entremos logo no beliscão.
- Pois então o que é beliscão??
- Como, o que é beliscão? Não me digam que não sabem o que é um beliscão (??)...
- É óbvio que sabemos – reagiu Vilvinho, retocando a maquiagem.
- Eu acho que aqui tem gente sabendo de mais sobre beliscões...
- Eis a questão... – ressuscitou Porfírio, entre um gole e outro (de café).
- Se todos sabemos o que é beliscão e não sabemos o que é dor, como vamos formalizar a tese a que nos propomos, sem estabelecer um nexo causal entre um elemento e outro?? – questionou o professor Senzala, um verdadeiro poço de sabedoria.
- A ordem dos fatores não altera o resultado.
- Neste caso altera.
- Não se trata de fatores em ordem mas de relação de causa e efeito.
- Também não altera. Não no plano da semiótica.
- Mas no da propedêutica, sim.
- E no prisma da hermenêutica, então??
- Podem parar. Mas o que é isso?? Vocês estão birutas??...
- Rosalino tem razão. Precisamos definir e conceituar; medir e aferir; classificar e listar, de maneira dimensionalmente justa, cada uma das partes desse binômio, do contrário não saberemos o que estamos inventando.
- Três partes, caros colegas. Trata-se de um trinômio.
Pasmo geral na sala, agora completamente poluída pelas charutadas e cachimbadas de uns e outros.
- Como assim, três elementos??...
- Claro, existe o sem. (B. sem D.), entende?...
- Ora, sem é sem. É, no mínimo, o contrário de com.
- Mas o que seria com?? Por acaso seria ao lado de, sobre o, após a, ou simplesmente apesar de??
- Com é com e sem é sem, ora bolas.
- Eis a questão... – bilabiou Porfírio, já estirado sobre a mesa de reuniões.
- Beliscão sem dor é possível... eu pressinto; prevejo, tenho a intuição...
- Acreditar é preciso; um pouco de fé até que não seria mau...
- Nada disso. A ciência pode fazer tudo sozinha, com as mãos na nuca!
- Mas não por muito tempo porque isso dá dor nas costas.
- Alguém disse dor – pera aí, alguém disse dor?? Todos sentem dor nas costas quando põem as mãos na nuca??
- Sim – todos.
- Então matamos a charada. A proposta será esta: - beliscão sem mãos na nuca.
- Impraticável, inexequível e portanto invendável. Quem iria consumir um produto que traz o engodo, a mentira, a impropriedade e a improbidade em suas entranhas??
- De fato só se pode beliscar sem as mãos na nuca.
- Mas a tese tem lógica. Sem as mãos na nuca é possível beliscar e não se sente dor nas costas sem as mãos na nuca, logo...
- Nem mais logo nem menos logo. É um absurdo. De mais a mais, dor de beliscão não é igual a dor nas costas por mãos na nuca...
- A dor do beliscão é fina – disse o de ray-ban.
- Não existem beliscões sem dor. Até porque sem dor não é beliscão.
- Mas então o que é dor??
- É o que o beliscão provoca, produz, dá origem...
- Nem toda dor vem do beliscão, nem todo o beliscão produz dor.
- Acho que esse caso não tem solução.
- É possível que não tenha...
O impasse produziu um silêncio avassalador. Nesse soturno ambiente foi possível ouvir as moscas e a conversa que se despetalava na sala ao lado:
- Tudo isso passa por um monitoramento de preços.
- E de salários também.
- E o câmbio continuará flutuante??
- Embora inevitável temos que convir que a indexação é a fonte provedora do pacto inflacionário...
- A taxa de juros estabilizando-se no pico controlará a flexibilização de setores invasivos...
- Sem esquecer que a conversão pelos parâmetros projetados abluirá o meio de circulação viciada...
- Isso se não houver prática de drumping.
- Negativo. Não tem nada a ver.
- Também acho. Penso que os nichos oligopoleizados tentarão emascular a oferta de circunstância para poder fertilizar a demanda calculada.
- Com achatamento salarial?? Com achatamento?...
- O poder de compra é a questão...
- A reposição jamais absorverá as quantificações da procura residual...
- Mas pode dar início a uma equalização de mercado...
- É verdade. Não resta a menor dúvida!
Dúvida??! A turma do beliscão-sem-dor estava besta. Melhor que esse só o Plano do controle da inflação.
Não se sabe como mas alguém achou uma porta e adentrou a sala dos formuladores do Plano.
- Boa noite – desculpem – mas sem querer estávamos escutando...
- O que? Alguém ouviu? Estamos grampeados?
- Calma – nós estamos aqui na sala ao lado e foi impossível não ouvir.
- Nós (?!) – Quem está aí? Quantos são?
- Somos uns poucos amigos, discretos e na verdade não entendemos nada do que vocês estão falando.
- Isso é cascata. É espionagem boa e barata.
- Fiquem tranquilos – não queremos atrapalhar. Nós precisamos é de uma opinião. 
- Mas, afinal o que está acontecendo?
- É que nós estamos aqui ao lado tentando inventar o beliscão sem dor e como chegamos a um impasse resolvemos pedir um voto de minerva de vocês.
- Por que nós?
- Bem a essa hora da noite – madrugada já – não temos muitas opções. Como vocês estão aí com as idéias a flor da pele, assim parece pelo tom do debate, seria ótimo que nos dessem uma ajudazinha em nossa difícil tarefa.
- Bom se o caso é esse acho que os colegas não se furtariam a uma breve e sucinta opinião.
- E o que recebemos em troca? – questionou o mais insatisfeito do grupo do Plano.
- Ora, temos ainda um saquinho de amendoins e meia coca-litro. E também dois envelopes de aspirina. Não sei se serviria como pagamento (?)...
- É pouco. Não atinge nosso preço.
- Então nada feito. Isso é tudo o que nos resta.
- Eu tenho uma idéia – disse o magrela com o lápis atrás da orelha.
- E qual é, então – indagou o de Ray-ban.
- Simples. Nós resolvemos o problema de vocês e vocês tentam resolver o nosso. Trabalho paga-se com trabalho – isso é moderno, futurista, revolucionário.  Vanguarda pura.
- Tá feito.
- Inventem um Plano para salvar a Economia brasileira. Calma. Não pode ser qualquer coisa. Tem que ser um projeto inteligente, incompreensível, complexo, multifacetário, sem o fio da meada.
- Tudo bem. Tentaremos. Faremos todo o esforço para inventar um plano nunca visto. Mas vocês tem uma missão que não é das mais fáceis.
- Qual é? – Manda ver – pode vir quente que estamos fervendo.
- Nós estávamos tentando inventar o beliscão sem dor. Agora esse abacaxi é de vocês. Boa sorte...
Silêncio geral. Pasmo total!
- “Bem fica uma coisa pela outra” – disse o de ray-ban – “afinal Plano Econômico e beliscão sem dor é tudo a mesma coisa”... não é (?)!

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Ingratidão

“Nunca cometam a ingenuidade de confiar em pretensos amigos que são maus filhos, porque é muito remota a possibilidade de que alguém, mau com os seus, possa ser um amigo generoso com estranhos”.

Esse belo, oportuno e inspirado texto pertence ao médico amigo, Dr. J. J. Camargo, cirurgião chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre.
Sobre o tema, em outro momento, trocamos correspondências, tentando aprofundar seu conteúdo, bem como compilar suas variantes. Claro que seu contrário-senso, a “gratidão”, sempre foi a matriz de nossa interlocução.
O amigo Dr. Camargo, médico diletante, tem a cotidiana missão de interagir com pessoas em compulsórios momentos de dor, medo, angústia, tensão, desespero e fragilidade. Justamente nesse clima e nesse ânimo é que falam as verdades do caráter e vigoram as virtudes do coração.
Na convivência com essa realidade da doença, amarga em sua essência e constrangedora em sua forma, é que o ilustre cirurgião consegue enxergar o âmago dos indivíduos em seus universos relacionais humanos. Foi dessa profundeza que o médico-escritor recolheu a observação supra-referida, que, infelizmente impõe-se como verossímil.
E assim se confirma que os ingratos são egoístas, invejosos e pretensiosos e por isso mesmo mesquinhos, ávaros, torpes, desbriados e definitivamente desinteligentes.
Vitor Hugo já disse: - “os ingratos são infelizes”...


sábado, 3 de agosto de 2013

Mascateando

Com a pasta cheia de promessas saiu pelo mundo para vender futuro.
Na primeira porta foi atendido por um manso velhinho curvado de olhar singelo.
- “Meu senhor tenho aqui um negócio de ocasião – preço módico, pronta entrega e lucratividade certa – futuro do bom  – é pegar ou largar”.
- Moço – o que tem esse teu futuro que me seja tão necessário?
- Tem poder, tem saúde, tem dinheiro, tem aventura. Mercadoria garantida – é comprar e levar.
- Quanto custa?
- Custa vida, fé, esperança, paciência, perseverança, empenho, força e saúde.
- Não posso comprar – não tenho a moeda que exiges.
- Faço desconto – pronto.
- Mesmo assim – não posso assumir tal compromisso, pois sei que não poderei pagar: - meu saldo é insuficiente.
- Então faça uma contra-proposta.
- Faço – pago teu futuro com meu passado.
- Não aceito. O que farei com  teu passado? A quem venderei?
- Venda aos moços – eles apreciarão tal experiência e a mesma poderá render-lhes bons dividendos.
- Negócio fechado. Passe pra cá seu passado e tome conta do meu futuro.
Com a mala cheia de passado bateu na segunda porta e foi atendido por um moço, irremediavelmente inválido.
- Rapaz, quer comprar passado?
- Ah – se quero – quanto custa?
- O presente, meu jovem – em suaves e módicas prestações mensais.
- Tudo bem, se aceitas meus trocados, faremos negócio já.
- Que moeda tens para mim?
- Tenho sofrimento, remédios, terapia, esta cadeira de rodas, duas muletas e um tédio formidável que no mercado negro vale uma fortuna.
- Negócio feito. Passe pra cá esse flagelo – vou vendê-lo por uma fortuna na primeira esquina para jovens aventureiros, inconscientes e voluntariosos, cansados da saúde, da normalidade, da riqueza, da felicidade e do bem estar.
- E o que farás com todo esse dinheiro?
- Comprarei, a preço de custo, mais futuro e mais passado.
- E aí, continuarás por aí, de porta em porta, vendendo essas bugigangas?
- Não – essa quantia depositarei no cofre de minha consciência – e tentarei viver dos gordos juros dessa experiência.
- Então, boa sorte e bons negócios.
- Obrigado, amigo. Um bom negócio nunca se deve perder...

Ajeitou suas tralhas e pegou carona na primeira nuvem rasteira em direção a fronteira.

O contrato

Nasci e por isso (ou apesar disso) contratei com a vida.
Contrato simples, bilateral, poucas cláusulas – com direitos e obrigações para ambos os lados – tudo muito justo.
Objeto de contrato: - a existência.
Obrigações: - a vida obrigava-se a conceder-se e eu de vivê-la.
Direitos: - correlatos mas  inespecíficos.
Sanções: complexo de culpa, remorso, neurose, ansiedade, frustração, sentimento de auto-comiseração, infelicidade.
Cá entre nós acho que fui profundamente lesado nessa cláusula pois tenho sobradas razões para desconfiar que a vida tem poucas chances de penar com esses castigos. Mas assinei e está assinado.
Tempo do contrato: - a vontade. Não ficou bem claro se a minha ou a da vida (?)... Salvo melhor juízo ficou subentendido que esse item obedeceria o critério da média das vontades dos contratantes, como convém a qualquer documento legítimo, honesto e pleno de equidade. Que assim seja.
Foro: - foi eleito o foro da consciência para julgar e decidir conflitos, dúvidas e casos omissos.
Inicialmente pensei ter levado vantagem nessa cláusula depois me dei conta de que não há consciência sem vida. Entenderam a jogada?...
Compreendi então, resignadamente, que a vida manobra soberanamente toda essa máquina do foro: - juízes, promotores, oficiais de justiça, cartórios e a própria legislação estão, cativamente a serviço da vida e essa rege-se por leis próprias devidamente, homologadas pela morte.

Contrato assinado: - só resta cumpri-lo. Que remédio?

A prisão do botijão

Glorinha bateu forte na porta da vizinha, pedindo socorro, pois sentira que tinha alguém no pátio interno da casa tentando roubar os botijões de gás. A notícia espalhou-se rápida como fogo rasteiro em campo seco. Em minutos a vizinhança toda descia na casa de Glorinha. Corre pelos fundos, tranca a frente, cuida o telhado, fecha o portão do lado. O cerco estava feito. A viatura da polícia chegou de pronto para dar mais brilho a aventura vespertina daquele domingo frouxo. Armas engatilhadas, estratégia na ponta dos pés, tática muito técnica, começou o trabalho de captura dos gatos. Corre para cá, corre para lá, sobe no telhado, pula o muro, encosta na parede, voz de prisão, não resista, mãos ao alto. Tudo muito rápido e profissional. Quando um dos policiais já estava com a mão no calcanhar de um dos gatunos, aconteceu o insólito: - o homem perseguido virou-se para o gerdarme e falou: - “por aqui ele não foi – eu estava cuidando”. O policial atônito olhou e viu que o solícito informante não portava nada que se assemelhasse a botijão e acreditou na informação. Sua fé fez com que desse meia volta e buscasse sua presa pelo outro lado.  Assim escapou o primeiro ladrão. O segundo aproveitando a carência de luminosidade e a concentrada atenção do público na cunheira da casa, juntou-se aos demais, e somou-se ao ruidoso clamor de justiça. Há quem diga que era um dos que mais gritava pedindo pronta punição para os fascínoras. O tempo ia passando e nada da polícia prender os amigos do alheio. Ao comandante da operação passou rápida suspeita de que tratava-se de alarme falso e de que a história deveria ser debitada a velha e conhecida histeria de dona Glorinha, assídua frequentadora do plantão policial. Seria mais um registro improcedente?? Os fatos levavam a isso. No entanto a verificação constatou que na verdade os botijões estavam fora do lugar. Aliás, muito fora de lugar. Um deles equilibrava-se no muro do vizinho e o outro estava reluzente no topo da casa. E os ladrões?? Mágica total. Sumiram como que por encanto. Depois de mais de hora volta a polícia de mãos abanando aparentemente  resignada. Para não deixar as coisas em brancas nuvens resolveu-se levar os botijões para averiguações gerais e investigações especiais. Mais de dois meses passaram e os únicos presos incomunicáveis continuam sendo os inatacáveis e balofos botijões cheios de tanto formalismo e burocracia.
Os ladrões estão por aí mas os botijões estão devidamente presos.

Bravos!

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Estradas Estaduais – que ganhamos?

Salvo melhor juízo, os pedritenses só tem contabilizado multas de trânsito na utilização das precaríssimas vias sob a responsabilidade do Estado (Daer) em Dom Pedrito.
Será justo cobrar-se legalidade no trânsito em uma via grosseiramente ilegal? Só para informar, as referidas vias não têm acostamento, sinalização adequada e obras de arte (pontes) na bitola da própria estrada.
Há anos Dom Pedrito, aguarda, pacientemente, as prometidas benfeitorias nessas importantes vias de escoamento de nossas riquezas.
E aí (?) – vamos continuar alimentando esse monstro da passividade diante de tamanho desrespeito a Dom Pedrito?
Com a palavra nossos representantes ou nós mesmos – cansados de promessas e falsas expectativas.

Boa viagem.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

O tom da indignação

(artigo escrito e publicado em agosto de 2007)
         Houve um tempo em que bastava uma pessoa de bem – leia-se com peso moral e respeitabilidade – falar de um assunto e este incorporava uma importância e uma significação marcantes na vida de uma comunidade. A densidade das palavras e das atitudes estava na dimensão equivalente da credibilidade, da confiabilidade, e do valor intrínseco do verbo e do exemplo. Era a verdadeira potência dos gestos e das palavras, em tempo de paz.
         Hoje, porém, em que pese o grau de respeitabilidade de quem fala, comentando, reivindicando, sugerindo, criticando, elogiando, etc, a mansidão não valoriza nem intensifica a essência e o conteúdo dos temas e das questões.
Em outros tempos se punha um governo a correr com a força das palavras e dos semblantes. Hoje os governos, de maneira geral, por terem perdido o recato, não se movem nem se comovem com isso. São surdos e cegos, mas, não são mudos, infelizmente. Quando querem subir ou se manter buscam apoios diversos, inclusive dos que falam com razão e agem com dignidade. Depois de vitoriosos tomam novas e polpudas doses de indiferença e antalgia.
         Mas não se enganem, nem se compadeçam: - os governos não entraram definitivamente para o rol dos sensitivamente incapazes – não – não houve mutilação, perda de tecido ou ferimento grave. O que aconteceu foi “apenas” um deslocamento (eu diria envelhecimento) do tônus perceptivo governamental.
         É a catarata oficial. É a surdez progressiva institucional. O que mudou, na verdade, foi o grau da capacidade de apreensão e compreensão dos governantes. Hoje não é qualquer murmúrio de quintal que demove a paquidérmica máquina pública. É preciso muito mais.
         Hoje impera a denominada política do relhaço. É a nova (e funesta) era do látego, da gritaria, do quebra-quebra. Não é só a qualidade do protesto que mudou – a forma, a quantidade, a contigencialidade e acima de tudo, o tom.
         Aí estão as manifestações que abundam em nossas vias e povoam os noticiários. Sem terras ali, sem tetos aqui, sem emprego, sem saúde, sem segurança, sem veracidade, sem educação, sem comida, sem dignidade.
         Nesse tom – quase sempre nos limites da barbárie – é possível perceber a comoção governamental e seu consequente requebrar de ossos. E move-se célere, solícito e visivelmente temeroso. Mas afinal, de que ou de quem tem medo o governo que, salvo melhor juízo, detém o monopólio da força? Tem medo da rejeição ideológica, da solidão administrativa, do esvaziamento assistencialista, do despropósito clientelista – tem medo de perder o voto, o poder, a vantagem. E por isso só tem olhos e ouvidos para escândalos e ruidosidades. Muitos setores de nossa sociedade há muito já se aperceberam disso – os sem terra, por exemplo, conseguem muito mais portando bandeiras invés de enxadas. As bandeiras geram ambiente de disputa. As enxadas amanham a terra e a alma, produzindo riqueza e calma. Quem quer isso? Os homens de bem querem – os governos populistas não.
         Por essas e por outras, é que populações ordeiras e pacíficas como a nossa estão perdendo terreno e amargando um balaio de frustrações. Agora mesmo, educadamente, levanta-se contra o aumento da tarifa nas contas de água. Fala, pondera, solicita, reivindica, faz abaixo assinados. Conseguirá ser vista e ouvida??
         Ou terá que reger-se em outro tom – pelo diapasão da indisciplina?
Nossos representantes e autoridades tem a palavra.
         Mas que isso – tem a oportunidade da atitude! Que seja!


quinta-feira, 27 de junho de 2013

Lideranças

Sempre fiquei com pé atrás quando se levanta a questão da falta de lideranças no contexto dos pleitos sociais.
Freud nunca economizou argumentos para explicar que os líderes, no geral, sob a ótica psico-emocional, via de regra, são aqueles que conseguem interpretar e representar a essência das paixões coletivas. E estas, normalmente, são anárquicas, difusas, ansiosas e rigorosamente desprovidas de razão e disciplina. Todos sabemos que uma sociedade organizada não prescinde de disciplina  e razão. Nesse tempo, nesse espaço e nessa circunstância, o líder, habitualmente, surge e se consagra pela incorporação, representação e substrato de uma situação de frustração geral e desvalia pontual. Uma sociedade com esse tipo de sentimento está definitivamente doente, na visão de Freud, e o líder, adoecido acima da média, teria o apanágio de representá-la sobejamente nessa realidade de caos.
Dessa forma e nesse ânimo, seria o mastro acima dos mastros – a bandeira prevalente sobre as demais, para indicar caminhos e ditar comportamentos em busca de respostas imediatistas mas suficientemente satisfatórias no clamor grupal.
Nesse cenário o líder saberá indicar saídas e seguramente saberá recomendar artifícios para acalmar o grito social. Mas, acurando a análise, veremos que as indicações são, na verdade, manobras intempestivas de salva-pátria, pródigas na forma mas carentes no conteúdo.
Passado o fato da frustração coletiva, por puro ilusionismo da ação e do discurso, sobra muito pouco de útil para realmente transmudar o âmago de uma situação calamitosa. Mas o líder receberá, e aceitará  a condição de destinatário e depositário de todo esse flagelo público, capitalizando, assim, todo o poder e toda a glória.
E para fazer exatamente o que?
Lideranças sociais geralmente são aptas e prontas nas respostas do que se deva fazer, mas sucumbem quando se questiona o por que (?).
A história, a grande e verdadeira líder na explicação dos comportamentos positivos da humanidade, não mente quando expõe, cruamente, as verdades no correr dos tempos. Hitler, Mussolini, Fidel, Chaves e outros – só para citar – estão inapenavelmente no reduto honroso (e vergonhoso) das lideranças mundiais.
E que proveito social tais lideranças conquistaram para gáudio e respeito da humanidade?
Por acaso alguém sabe o nome do líder da nação sueca, por exemplo? E da Noruega, alguém sabe quem é o líder?
Essas duas sociedades, e outras tantas, deliberadamente ilideradas, tem um nível de desenvolvimento humano e social, invejável e conseguem o prodígio de dar, a cada um o que é seu, cotidianamente, sem ruidosidades midiáticas.
O Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia e muitas outras nações conseguem sobreviver condignamente sem lideranças ostensivas e vivem felizes, plenamente satisfeitas em suas comezinhas exigências históricas e existenciais.
Quem lidera no Chile a nação humanamente mais rica da América Latina?
Pensemos, portanto, com muito juízo e calma sobre essa busca frenética por lideranças em nosso heterogêneo Brasil. O tiro pode sair pela culatra e certamente sairá se deixarmos que nossas paixões e imediatismos falem mais alto que nossas verdadeiras necessidades nacionais. Sejamos cultos, conscientes, críticos, providentes e líderes de nós mesmos – esse é o melhor caminho e essa a mais desfraldável e digna bandeira do progresso em prol da qualidade de vida de nossa gente.
Isso é o que importa. O resto é teatro e representação.
Não percamos tempo buscando lideranças – vamos, isto sim, conquistar vida, buscando e achando boas causas para fazer feliz este povo e grande esta Nação.

O Brasil – grande e glorioso depende exclusivamente de cada um de nós.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Cotrijuí – o fato social

De tudo o que está acontencendo com a Cooperativa Cotrijuí e as consequências que atingem a Unidade de Dom Pedrito, preocupa, sobejamente, o “fato social” que não é outro senão a demissão massiva de pessoas que sobrevivem exclusivamente desse emprego.
            A Cotrijuí é a segunda maior empregadora de nosso município. No mínimo mil e quinhentas pessoas sofrerão os efeitos cruelmente imediatos desse flagelo.
            Questões político-administrativas, e seus desdobramentos financeiros serão diluídas no tempo e resolvidas na entranha dos embates jurisdicionais.
            Mas a calamidade do desemprego e a inevitável premência das famílias que subsistem através dessa função laborativa, gera um fato social de imensa significância, que não pode e certamente não vai passar despercebido em uma comunidade que diariamente faz enorme esforço juntando seus trapos para pleitear melhor qualidade de vida para esta terra e sua gente.
            Dom Pedrito é, com muito orgulho a Capital da Paz mas nada autoriza dizer-se que seja, por ação ou omissão, a Capital da Passividade.
            Bem além do discurso é preciso que autoridades e lideranças peguem esse freio nos dentes e demonstrem, de maneira cabal e determinada, que esta terra tem dono e sua gente tem fibra suficiente  para não permitir que tamanha injustiça se cometa contra a força de trabalho deste tramado social, denominado povo, sustentáculo de nossa grandeza de ser, ter e fazer.
            O que seria de nós sem nossos trabalhadores?
            Como ficam ou ficarão esses pedritenses/brasileiros que empenharam sangue, suor e lágrimas na sustentação diuturna dessa Empresa que tantas riquezas amealhou para esta região?
            Lamentar, apenas, os caprichos da sorte ou os contragolpes circunstanciais da economia será muito pouco, quase nada.
            A história de nossa dignidade jamais nos perdoará se não agirmos, ou melhor, reagirmos, decidida e prontamente em prol da reversão ou razoável reparação desse quadro calamitoso.
            Desprezando questões pontuais, ranços pessoais, questiúnculas político-administrativas, e filigranas macro ou micro econômicas , é preciso que se atente para o “fato social” de maior significância que é o prejuízo familiar, histórico e relacional de uma parte indesprezível de nossa comunidade.
            Sem esse tropeço já lidamos cotidianamente com os embaraços da necessidade pública originada pela falta de empregos  ou pela carência de ocupações de remuneração digna neste município da metade sul.
            Trabalhadores não são materiais de validade programada, que podem, ao sabor do uso, ser dispensados e jogados no cesto dos resíduos da inutilidade geral.
            Acho que todos estamos chamados para o equacionamento deste problema. Todos inclusive e especialmente o Ministério Público, grande Instituição, na minha opinião, a maior benesse da Constituição de 88, a denominada Carta Magna da Cidadania.
            A teoria nos encoraja mas só a prática pode, de fato, tornar objetiva e nobre essa coragem. Só através dela será possível remover montanhas: com fé, verdade, ousadia, desprendimento e espírito público. Quem se habilita? O futuro cobrará. Nossos filhos e netos um dia contarão essa passagem.
            Oxalá sejamos heróis nessa história.
            Reação é tudo o que se pede, aqui e agora.


segunda-feira, 10 de junho de 2013

Manancial

       Quando o desterro das ideias originais se transforma em bandeira dos oportunistas mercantis; quando a febre dos modismos provê o delírio do consumismo banal; quando os desertores da opinião acampam nos jardins dos acomodados; quando a ausência de senso crítico exaure a vontade de saber e valer; quando a razão da cultura útil perde fôlego na insana escalada da vantagem e da vendagem; quando o prodígio da palavra escrita ou dita esvai-se pela artéria rompida das miserações da rotina; quando arte e paixão perdem azo, não movem nem comovem, porque outros “botões” brotam de nossos dedos e olhos, assustadora e dominantemente; quando a genuinidade e a autenticidade não mais passeiam pelas avenidas do “progresso”; quando a desertificação da inspiração e do arroubo avança e arranca os derradeiros fiapos verdes de nossa esperança veemente; quando o vento das conveniências da “modernidade” torna-se seco e árido e castiga-nos com a sede, a fome e a desolação; quando a torrente da informação de encomenda lava e leva nossos pertences anímicos costa abaixo, numa cascata sem fim... é tempo de dar um basta!
         É tempo de resgatar um tempo de inspiração e arte, de fé e vontade, de razão e consciência, de amor e vivência, de saúde e prudência, de liberdade e paz, de glória e virtude, de humanismo e solidariedade, de oração e transcendência. É tempo de buscar origens para gerar promessas. É tempo de soprar aragem e originar procelas. É tempo de juntar sementes e cultivar searas. É tempo de respeitar e admirar o tempo.
         De onde brotarão forças para tal intento? De onde vem o estro para a iniciativa? De onde efervescem as ideias, os ideais e os idealistas?
         Há um manancial de valores e predicados que, gota a gota, verte alimentando a imaginação, excitando a vida. É um manancial de credos e vivências – uma vertente de mistérios cotidianos – um reduto de harmonia e êxtase, um nicho de dádivas e milagres, um espelho da alma que nos vive.

         Faça você também brotar em si esse manancial de prodígios: - pense, reflita, inspire-se e crie.

terça-feira, 4 de junho de 2013

O erro

Quando soube da morte de Isolda, sua amiga de credo e vida, Ledir levou a mão ao peito e sentiu aquela angústia das perdas difíceis de repor. Um tsunami de tristeza invadiu sua praia de tolerância e um grande alague de melancolia varreu a planície de sua felicidade, levando tudo por diante. Um caos emocional digno da mais cruel e catastrófica cinematografia  sentimental capaz de despertar as maiores comoções relacionais, estava posto em cena, com direito a efeitos especiais e compungidos arranjos no roteiro de uma fatalidade cênica.
Perder alguém é deveras difícil. Perder uma amiga do peito – pessoa que por tantos e gloriosos tempos foi parceira na fiação da existência cotidiana, era abismo sepulcral, tirador de fôlego e alegria de viver.
A vida, infelizmente, um dia nos apronta esse tipo de coisa e não há remédio senão tentar remediar o imenso estrago.
Com esse ânimo, com dores inconfessáveis, Ledir correu para o velório, na esperança de pinçar uma réstia de luz na imagem inerte da amiga, que por força da memória e do sentimento fraternal ainda quente, poderia esboçar um último e confortador até breve.
Chegou ao velório sofridamente, aproximou-se da amiga morta convenientemente escondida sob leve manto no rosto, apertou sua mão desfalecida e pranteou copiosamente a perda irreparável e inoportuna. Chorou como devem chorar as almas puras neste vale das sofreguidões humanas.
No entorno uma porção de circunstantes testemunharam, com olhares arregalados, tamanha demonstração de carinho e dor.
Ato seguinte, ao desvendar o rosto da amiga, chocou-se ao perceber que não era ela que ali estava. Jazia naquele leito um ele, cheio de morte e mansidão.
Naquele sepulcro intermediário deitava-se alguém que nem de longe lembrava a querida amiga. Na encomendação desta para melhor ali repousava quietamente Ferdinando, homem de muita história, e conhecidas e reconhecidas aventuras pouco ortodoxas e cá, entre nós, ruidosa e escandalosamente amorosas. O que se dizia, sem contestação, que o dito salafrário em vida tinha usado e abusado de seu inefável poder conquistador. Homem de muitas mulheres e grandes bacanais.
Dizem até que a família convencional (e legal) já tinha contabilizado os vértices, as porções e os escapes desse inveterado Dom Juan. Naquele momento extremo estava, em verdade tudo dominado e perdoado. A viúva, resignada, já tinha no caderno a lista impublicável dos achegos e das amantes do safado pulador de muros.
Mas naquele azo a história se complicou. Quem seria a loira, que derramava lágrimas compulsivamente pelo desaparecimento do safardana?
Não estava na lista. Não constava na relação. Quem seria essa, com tamanha força em seu sentimento de perda, que constrangia os demais, com seus soluços ruidosos e saudosos?
Ferdinando, embora já do outro lado, aumentava, assustadoramente, os créditos de sua condição conquistadora, deixando no ar uma aura desafiadora no contexto das relações casamentais: - só na morte se saberá de fato toda a verdade – doa a quem doer.
Será?
Chorar em velório errado não tem o poder de mudar a história mas balança as circunstâncias de nossa comezinha vida neste pedacinho de universo acidental.
Não acreditam?
Chore erradamente e topará com essa e outras verdades rigorosamente inenarráveis. A vida e a morte cheias de surpresas – umas fazem rir, outras fazem chorar – de rir...