Finamente acomodados no recôndito da
mais funda sabedoria, lá estavam os notáveis em volta de uma mesa de reuniões,
mas especialmente unidos em torno de uma grande ideia: - conceber, sistematizar
e editar o beliscão sem dor. Esse
era o maior desafio no limiar do terceiro milênio.
Dor sem beliscão já existia há
tempos. Era preciso, portanto, inverter a lógica comezinha.
Para tudo dar certo seria decisivo
começar-se do início. O que é dor? Em quantas partes se divide? Onde, como,
quando e por que ocorre? A dor é igual a dor? E o beliscão? Qual seu princípio
ativo? Quais as variantes e as sub-espécies? Onde é mais usual? Por que? Há
beliscões que a própria razão desconhece? Quantos são? Onde se reúnem??
A fúria analítica tinha, de fato,
incorporado na reunião e a coisa estava, assim, muito bem encaminhada. Pelo
andar da carreta, firme e demolidor, é certo que não ficaria conceito sobre
conceito, depois desse estrebuchamento filosófico.
- A dor é fina – disse o magrinho de
óculos Ray-ban.
- Logo ela também é grossa –
atravessou o topetudo e bolachudo que ostentava uma gravata serpentiforme.
- Se permitem os colegas – interferiu
Vilvinho, coberto de rendas – devo dizer que existe a dor média, então.
- Fina, grossa ou média, o que é, afinal
essa tal de dor?? – perguntou Rosalino, branco e gordo de tanto escritório.
- Eis a questão... – comentou
Porfírio, que não parava de beber aquele café trazido de casa.
- Este é mais um dos insondáveis
mistérios que vagueia por este mundo sem dono – sentenciou o semi-místico do
grupo, charutando compulsivamente (ou convulsivamente...)
- Acho de bom alvitre passarmos para
o outro termo da equação – sugeriu o vetusto professor Senzala.
- Isso, entremos logo no beliscão.
- Pois então o que é beliscão??
- Como, o que é beliscão? Não me
digam que não sabem o que é um beliscão (??)...
- É óbvio que sabemos – reagiu
Vilvinho, retocando a maquiagem.
- Eu acho que aqui tem gente sabendo
de mais sobre beliscões...
- Eis a questão... – ressuscitou Porfírio,
entre um gole e outro (de café).
- Se todos sabemos o que é beliscão e
não sabemos o que é dor, como vamos formalizar a tese a que nos propomos, sem
estabelecer um nexo causal entre um elemento e outro?? – questionou o professor
Senzala, um verdadeiro poço de sabedoria.
- A ordem dos fatores não altera o
resultado.
- Neste caso altera.
- Não se trata de fatores em ordem
mas de relação de causa e efeito.
- Também não altera. Não no plano da
semiótica.
- Mas no da propedêutica, sim.
- E no prisma da hermenêutica,
então??
- Podem parar. Mas o que é isso??
Vocês estão birutas??...
- Rosalino tem razão. Precisamos
definir e conceituar; medir e aferir; classificar e listar, de maneira
dimensionalmente justa, cada uma das partes desse binômio, do contrário não
saberemos o que estamos inventando.
- Três partes, caros colegas.
Trata-se de um trinômio.
Pasmo geral na sala, agora
completamente poluída pelas charutadas e cachimbadas de uns e outros.
- Como assim, três elementos??...
- Claro, existe o sem. (B. sem
D.), entende?...
- Ora, sem é sem. É, no mínimo, o
contrário de com.
- Mas o que seria com?? Por
acaso seria ao lado de, sobre o, após a, ou simplesmente apesar de??
- Com é com e sem é sem, ora bolas.
- Eis a questão... – bilabiou
Porfírio, já estirado sobre a mesa de reuniões.
- Beliscão sem dor é possível... eu
pressinto; prevejo, tenho a intuição...
- Acreditar é preciso; um pouco de fé
até que não seria mau...
- Nada disso. A ciência pode fazer
tudo sozinha, com as mãos na nuca!
- Mas não por muito tempo porque isso
dá dor nas costas.
- Alguém disse dor – pera aí, alguém
disse dor?? Todos sentem dor nas costas quando põem as mãos na nuca??
- Sim – todos.
- Então matamos a charada. A proposta
será esta: - beliscão sem mãos na nuca.
- Impraticável, inexequível e
portanto invendável. Quem iria consumir um produto que traz o engodo, a
mentira, a impropriedade e a improbidade em suas entranhas??
- De fato só se pode beliscar sem as
mãos na nuca.
- Mas a tese tem lógica. Sem as mãos
na nuca é possível beliscar e não se sente dor nas costas sem as mãos na nuca,
logo...
- Nem mais logo nem menos logo. É um
absurdo. De mais a mais, dor de beliscão não é igual a dor nas costas por mãos
na nuca...
- A dor do beliscão é fina – disse o
de ray-ban.
- Não existem beliscões sem dor. Até
porque sem dor não é beliscão.
- Mas então o que é dor??
- É o que o beliscão provoca, produz,
dá origem...
- Nem toda dor vem do beliscão, nem
todo o beliscão produz dor.
- Acho que esse caso não tem solução.
- É possível que não tenha...
O impasse produziu um silêncio
avassalador. Nesse soturno ambiente foi possível ouvir as moscas e a conversa
que se despetalava na sala ao lado:
- Tudo isso passa por um
monitoramento de preços.
- E de salários também.
- E o câmbio continuará flutuante??
- Embora inevitável temos que convir
que a indexação é a fonte provedora do pacto inflacionário...
- A taxa de juros estabilizando-se no
pico controlará a flexibilização de setores invasivos...
- Sem esquecer que a conversão pelos
parâmetros projetados abluirá o meio de circulação viciada...
- Isso se não houver prática de
drumping.
- Negativo. Não tem nada a ver.
- Também acho. Penso que os nichos
oligopoleizados tentarão emascular a oferta de circunstância para poder
fertilizar a demanda calculada.
- Com achatamento salarial?? Com
achatamento?...
- O poder de compra é a questão...
- A reposição jamais absorverá as
quantificações da procura residual...
- Mas pode dar início a uma
equalização de mercado...
- É verdade. Não resta a menor
dúvida!
Dúvida??! A turma do beliscão-sem-dor
estava besta. Melhor que esse só o Plano do controle da inflação.
Não se sabe como mas alguém achou uma
porta e adentrou a sala dos formuladores do Plano.
- Boa noite – desculpem – mas sem
querer estávamos escutando...
- O que? Alguém ouviu? Estamos
grampeados?
- Calma – nós estamos aqui na sala ao
lado e foi impossível não ouvir.
- Nós (?!) – Quem está aí? Quantos
são?
- Somos uns poucos amigos, discretos
e na verdade não entendemos nada do que vocês estão falando.
- Isso é cascata. É espionagem boa e
barata.
- Fiquem tranquilos – não queremos
atrapalhar. Nós precisamos é de uma opinião.
- Mas, afinal o que está acontecendo?
- É que nós estamos aqui ao lado
tentando inventar o beliscão sem dor e como chegamos a um impasse resolvemos
pedir um voto de minerva de vocês.
- Por que nós?
- Bem a essa hora da noite –
madrugada já – não temos muitas opções. Como vocês estão aí com as idéias a
flor da pele, assim parece pelo tom do debate, seria ótimo que nos dessem uma
ajudazinha em nossa difícil tarefa.
- Bom se o caso é esse acho que os
colegas não se furtariam a uma breve e sucinta opinião.
- E o que recebemos em troca? –
questionou o mais insatisfeito do grupo do Plano.
- Ora, temos ainda um saquinho de
amendoins e meia coca-litro. E também dois envelopes de aspirina. Não sei se
serviria como pagamento (?)...
- É pouco. Não atinge nosso preço.
- Então nada feito. Isso é tudo o que
nos resta.
- Eu tenho uma idéia – disse o
magrela com o lápis atrás da orelha.
- E qual é, então – indagou o de
Ray-ban.
- Simples. Nós resolvemos o problema
de vocês e vocês tentam resolver o nosso. Trabalho paga-se com trabalho – isso
é moderno, futurista, revolucionário.
Vanguarda pura.
- Tá feito.
- Inventem um Plano para salvar a
Economia brasileira. Calma. Não pode ser qualquer coisa. Tem que ser um projeto
inteligente, incompreensível, complexo, multifacetário, sem o fio da meada.
- Tudo bem. Tentaremos. Faremos todo
o esforço para inventar um plano nunca visto. Mas vocês tem uma missão que não
é das mais fáceis.
- Qual é? – Manda ver – pode vir
quente que estamos fervendo.
- Nós estávamos tentando inventar o
beliscão sem dor. Agora esse abacaxi é de vocês. Boa sorte...
Silêncio geral. Pasmo total!
- “Bem fica uma coisa pela outra” –
disse o de ray-ban – “afinal Plano Econômico e beliscão sem dor é tudo a mesma
coisa”... não é (?)!