quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O Cometa

Dona Laurinha tinha tudo para ser escalada na equipe titular de histeria.
O último ataque, com direito a todos os chiliques que a medicina conhece, teve como causa objetiva os desarranjos de seu mimado gato angorá. Dr. Paranhos, médico experiente e dedicado, já sabia essa lição de cor.
Quando chamavam para atender dona Laurinha, Dr. Paranhos prescrevia os procedimentos de praxe. Depois do surto – o olho do furacão – sobrevinha uma longa fase de lucidez e atividade produtiva. De ataque em ataque, sua estimada cliente is galgando os tortuosos degraus da vida, rumo a uma longevidade digna do livro do recordes. “Mulher gemida – mulher para toda vida” – esse é um adágio que muito sabe da verdade.
As histórias de dona Laurinha tinham um roteiro conhecido. Primeiro era o desmaio, com direito a tremuras e outros quetais. Quando voltava a si, dava início à sessão de torrentes lamentações. Falava no falecido – ressaltando as imensas e incomparáveis qualidades do dito cujo. Depois, queixava-se do mundo e dos tempos loucos dessa modernidade sem critérios. Nesse ato engasgava-se com ênfase e pranteava, ruidosamente, sem derramar lágrima sequer.
Quando a verborragia alcançava os píncaros, seguia-se um novo espetáculo de coreográfico desmaio. A criadagem, atenta, corria na volta. A parentada azulava uma sofreguidão sem par. Em cada crise dona Laurinha ia pondo sua mossa no tempo, sem medo e risco de envelhecer.
Num domingo avulso, cheio de sol e preguiça, Dr. Paranhos foi chamado, às pressas, para atender sua pitoresca paciente amiga. O quadro era o de sempre. Dr. Paranhos tranqüilizou-se e acalmou os circunstantes. Quando refez-se do primeiro desmaio, dona Laurinha virou-se para o médico e disse, com visível e contagiante alegria adolescente nos olhos:
-         Doutor, estou feliz! Agora Deus já pode me levar. O que vi nesta madrugada é a beleza suprema da natureza. Estou satisfeita, não preciso ver mais nada. Dr. Paranhos, eu vi o cometa... Que maravilha!
Dr. Paranhos, então, preocupou-se – isso não estava no script de dona Laurinha. A doença agravara-se de repente. Alucinações não estavam no programa...
-         Doutor, não posso esquecer aquela cauda luminosa!...
-         Êpa! A coisa é séria. Isso é delírio galopante...
-         Reparando bem, doutor, dava para ver a mão de Deus regendo um imenso coral de anjos, do meio daquela luminosidade indescritível!...
-         Ih! O caso é grave mesmo. Minha paciente agora vê cometas, anjos e coisa e tal. Acho que serei obrigado a reforçar a química do tratamento. Vou experimentar a novidade que aquele viajante deixou ontem no consultório, raciocinava o diletante Dr. Paranhos, um verdadeiro cientista, bom clínico e reconhecidamente desligado.
A bem da verdade, diga-se que Dr. Paranhos era tão dedicado quanto distraído. Excessivamente concentrado, diziam todos, com carinho. Seguidamente tentava meter sua chave em porta de carro alheio.
Não raro comentava assuntos políticos e sociais rigorosamente vencidos. Era comum ver o admirável soldado de Hipócrates, às horas tantas, no hospital, espreitando o sono reparador de um cliente seu. Sua vida médica era um autêntico e genuíno sacerdócio. Um homem raro, sem dúvida.
-         Dona Laurinha vendo cometas! – só me faltava essa ...! O caso é gravíssimo.
Saiu dali decidido a encontrar uma solução terapêutica para o problema. E que problema! – alucinações, delírios...
Quando entrava em casa topou com um amigo da redondeza:
-         E aí, doutor, viu o cometa?...
-         Que cometa?...
-         Ué, doutor, não me diga que não viu, todo o mundo viu!...
-         Como assim?...
-         Pois esta noite passou um cometa dos bem grandes. Parecia uma bola de fogo deixando uma cola de luz que mais parecia um disco voador!...
-         É mesmo?...
-         É, o senhor não viu?
-         Ah, o cometa! Claro que sim... claro que sim...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Chaves

       Não saberia dizer de onde nem quando surgiu essa necessidade humana de chavear-se por todos os lados, sob diversos pretextos. O fato é que cada um de nós poderia valer seu peso em chaves...
         Já repararam quanta chave cada um possui?
         É a do cofre, a da gaveta, do telefone, do carro, da casa, da caixa postal, da moto, do computador, da porteira, da geladeira, da mala, do armário, do gás, da loja, da bicicleta, da adega, da urna, do campanário, da despensa, do galpão, da gaita, do avião, do baú, do navio, do relógio, da luz, da cidade, do coração...
         Houve um tempo em que se pretendeu medir o poder de uma pessoa pelo número de chaves que portava. Nessa época, de tamanho sincretismo funcional, ter a chave significava possuir a resposta. Ter a chave era ter a saída. Resposta de quê? Saída para onde? Dizia-se que o rei reinava mas quem mandava, mesmo, era seu guarda-chaves. Era? Os que conviviam entre gemônias e masmorras sabiam bem que era.
         Na Idade Média, os famosos cintos de castidade, chaveados por todos os lados, batizaram um estilo de vida ainda hoje, plenamente, valorizado. Naquele tempo, os heróicos e ausentes cavaleiros das Cruzadas, entregavam as preciosas chaves a guardadores tão confiáveis quanto eunucos...
         Em pragmatismo sabiamente solenizado pela máxima – “reze mas mantenha o camelo bem amarrado” – varou os séculos para chegar íntegro até nós, pelo bem de todos e satisfação quase geral da nação.
         Atavismo moral não se discute – cumpre-se e seja o que Deus quiser...
         Chave – esse objeto de amor e do ódio, da crença e da dúvida, da satisfação e da frustração, do sim e do não, da ação e da omissão, do bem e do mal, do tudo e do talvez...
         Mas, então, busquemos a origem dessa engenhoca tão cara para nossa humanidade. Quem, afinal, são os inventores ou descobridores de tal prodígio?
         Todos sabemos que a fechadura foi inventada  pelos portugueses. Foi!
         E sobre isso não resta qualquer meia volta de dúvida.
         E a chave? Essa veio tempos depois provocando verdadeiro furor no contexto histórico-existencial da época. Há controvérsias. Alguns dizem que foram os ingleses que, enfim, aperfeiçoaram o ousado invento dos lusitanos. Outros afirmam que a chave foi, realmente, “inventada” por um raivoso e asfixiado batalhão de gregos, a bordo de um imenso, desajeitado e trancafiado cavalo de madeira, na famosa invasão de Tróia.
         Conta-se, até, que a hercúlea tarefa precisou de auxílio dos que estavam do lado de fora. Há crônicas febris da época, relatando a particular dificuldade para destrancar-se a porta do tal cavalo.
         Dizem os detalhistas que nessa oportunidade podem ter surgido, em boa hora, a utilitária chave de fenda e a esnobe chave inglesa.
         A história não entra em pormenores, mas não é difícil deduzir que a própria chave cachimbo foi devidamente usada na ocasião, oportunizando o ato solene de fumá-la, depois do percalço, a fim de consolidar e referenciar a grande paz.
         Guerras à parte, voltemos ao miolo da questão.
         Há chaves para todos os gostos e propósitos. Existem as de braço, as de pernas, as gramaticais, as sistemáticas, as genealógicas, as borboletas, as de boca, as de estrela, as  eletrônicas e tantas outras, de inestimável valia.
         A melhor cena teatral que testemunhei foi aquela do gigante que após arrombar a porta do reduto onde estava a indefesa mocinha, engole a chave com estilo, mastiga  a dita cuja com arte, e lança cúpidos olhares em direção à presa, inapelavelmente perdida. Observem a dimensão dessa atitude, cabalmente irrecorrível!
         Vendo bem, na vida real, tudo é assim – uns fecham e abrem e outros apenas passam, ou jamais passarão...
         O assunto é vasto e merece outros desdobramentos. De minha parte, devo dizer, que estou aqui, atônito, solitário, desamparado, procurando utilidade para uma diminuta chave que não sei onde se encaixará. É uma chave pequena, simples, bronzeada e de pouco peso. É de uma gaveta, descubro com alegria e esperança. O que contém essa gaveta? Dólares? Ações? Jóias? O segredo da eternidade? As respostas da felicidade?...
         Não!
         Dentro da gaveta há mais uma porção de chaves... E só!

domingo, 18 de dezembro de 2011

A Ovelha Ladra...

Na verdade, a ovelha bale, mas são tantos os mistérios entre o céu e a terra que, às vezes, somos obrigados a espichar as fronteiras de nossa vã filosofia.
Para relatar um recente abigeato ocorrido no “povinho das sina-sinas”, arredo o aramado do conhecimento para abrigar o gordo rebanho dos absurdos e dos disparates.
O caso parecia simples na lavratura competente do inspetor de plantão: - Algumas ovelhas maneadas jaziam semi-vivas (ou semi-mortas), no interior de um carro de passeio, em lugar ermo, em hora suspeita.
Os fatos: - O piloto da tal condução e seu comparsa, instados a parar na barreira policial, para meras e habituais averiguações, contraditaram a ordem, acelerando em disparada. A polícia, diante de tamanho desacato, lançou mão de ação extrema, abrindo fogo contra a viatura. Acertou o ombro de um, mas o outro escafedeu-se  perdendo os chinelos. Mais perto, constatou-se a presença de uma dúzia de animais ovinos, mal acomodados, no interior do auto fugitivo. A singela dedução do “quem não deve, não teme”, foi suficiente para admitir-se que era um ilícito, considerando a reação intempestiva dos donos do veículo, diante da blitz policial.
No aprimoramento das investigações, verificou-se que as ovelhas pertenciam a terceiros e que nenhum documento oficial chancelava a legalidade daquele transporte. Abigeato puro e simples – sem dúvida!
Dúvida?...
Uma boa e farta embretada de dúvidas foi o que se seguiu nesse inquérito, quando o advogado esparramou argumentos em defesa dos ocupantes do carro em causa. Somente um era o dono, o outro era apenas um “carona” acidental.
O proprietário do sedã dizia, através de seu verboso defensor, não ter a menor idéia de como aqueles bichos tinham ido parar no interior de seu automóvel. Aproveitava para dizer, inclusive, que tal acontecimento o desgostava, profundamente, não só pela aberração mas, especialmente, pelo incômodo do prejuízo no estofamento e arredores. Sugeria, até, iniciar-se tratativas com vistas a uma procedente ação indenizatória, tão justa quanto justificada.
Quanto ao carona acidental, literalmente  acidentado, uma tropa de boas razões o socorrem, exigindo sua inocência sumária. Visto estava que o atropelo  de circunstâncias inconseqüentes violentou o arranjo e a ordem de sua ilibada volição cidadã, jogando-o no olho de um furacão casual, vitimando-o, lamentavelmente. Enfim, dois anjos pegos a traição pela insânia mundana, justo no imaculado portal dos cânticos etéreos. Que pecado...!
Já os policiais, de agredidos, passaram, milagrosamente, à condição de agressores e agora povoam páginas e páginas com justificativas e explicações. Tentam explicar por que estavam de campana e por que abriram fogo. São obrigados a esclarecer por que a água é mole, o fogo é quente e a roda é redonda.
Explicarão e justificarão, um dia, e tudo ficará bem.
As ovelhas e os proprietários, no entanto, estão em maus pelegos. Terão de buscar, a peso de ouro, verdadeiros gênios jurisprudenciais para safarem-se dessa formidável enrascada patrocinada pelo comportamento pernicioso de uma ovelha, provavelmente azul, que, criminosamente, desencaminhou todo o rebanho. Invasão de propriedade é o mínimo que se deverá imputar à conduta delinqüente dessas marginais de lã.
E os proprietários, então, culposos contumazes, onde estavam e o que faziam quando deveriam prover boa educação e princípios morais ao rebanho rebelde?... Onde já se viu invadir, assim graciosamente, propriedade alheia como se este rincão fosse terra sem lei?...
Reponha-se a ordem e a legalidade, enquanto é tempo, em nome da justiça, da paz e da liberdade. Tudo pela dignidade de nossas instituições!...
Diante do relato – na crueza dos fatos – questiono: - A ovelha ladra, ladra ou não ladra? Hein?...
Os fenômenos estão aí para quem deles quiser tirar bom partido, até em nome da sempre saudável cultura geral. O saber e o conhecer não ocupam lugar. Acreditar, confiar, compreender, explicar, produzir, policiar e justificar sim, são verbos que sempre enchem os espaços. E como enchem...!
Daqui onde estou, antes que o século acabe de balde, dá bem para ouvir o balido dos cães, o ladrar dos gatos e o miado dos burros, enquanto a caravana passa, garbosa, pelo umbral rotundo dos milênios pardos...
Até quando?...
Quosque tandem, Catilina?...!