quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Chove!!...



        Incomodado por formigas, empregados, impostos e visitas inoportunas o Velho Moraes, um dia, resolveu vender a chácara. Chamou o corretor de sua confiança e autorizou o negócio. Coisa de ímpeto – impulsiva – momento de raiva e desgosto. Dois dias depois estava profundamente arrependido da decisão.
        Mas, palavra é palavra, e naquele tempo era usual honrar-se a palavra empenhada, deixou correr a sorte por conta das tratativas  do talentoso intermediário.
        Lá por uma tarde de domingo aparece um interessado comprador para revisar a mercadoria. O Velho Moraes, contrariadíssimo, recebeu o pretenso e começou a mostrar as “comodidades” da chácara.
- “Linda mangueira” – comentou, com entusiasmo, o pretendente.
- “Precisa de reparos” – disse, secamente, o proprietário.
- “Mas não embarra (?)...”
- “Quando chove é um chiqueiro”.
- “E os aramados, seu Moraes?”
- “Ah, estão quase todos no chão”.
- “Bem, isso se conserta...”
        O empregado caseiro que assistia a conversa-caminhada olhou nos olhos do patrão, meio surpreso, sem entender o que estava acontecendo, pois os arames tinham sofrido reparos, recentemente...
- “E o galpão. Seu Moraes?”
- “No galpão chove – mais no centro e menos nas pontas...”
- “Mas não chove”. Comentou o caseiro, timidamente.
- “Chove ! !” – disse o Velho, de forma categórica.
- “Tem formiga aqui?”
- “Não só aqui – estão em toda a parte...”
- “E a água?”
- “É escassa, turva e saloba”.
- “Mas é bem doce” – disse, com voz sumida, o empregado.
- “Saloba ! !” – contraponteou o Velho Moraes, transpirando impaciência.
A essas alturas o comprador já estava entre desanimado e desconfiado.
- “E a casa?”
- “A madeira tem que ser toda trocada. Chove no quarto, na sala e na varanda”.
- “E na cozinha também chove?” – indagou, sutil, o esperto interessado esperando surpreender uma contradição.
- “Na cozinha não chove” – falou alto o caseiro, já, decididamente, amotinado.
- “É, na cozinha não chove” – concordou o Velho Moraes aparentemente resignado. – “Na cozinha a água brota do chão como se fosse um manancial...”
- “E os vizinhos?”
- “São bons quando estão dormindo”.
- “E os impostos?”
- “São caros. Estou vendendo a chácara para poder pagá-los”.
Esse foi o tiro de misericórdia na alegria do comprador. Despediu-se e tratou de sair rápido de cena.
        O Velho Moraes satisfeito de não ter faltado com a palavra e não ter cometido a besteira de vender a chácara, voltou para seus afazeres cheio de vontade e disposição. Enquanto ordenava a capina das laranjeiras ouviu uma ligeira queixa de seu caseiro.
- “Seu Moraes, a casa está precisando de telhado novo”.
- “Por que?”
- “Porque chove como na rua”.
- “Mas na casa não chove”.
- “Chove! – os outros compradores tem que saber disso...”
- “Então chove. Mês que vem vou dar um reforço no teu soldo...”
- “Chove e é mal assombrada, seu Moraes...


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Bom para a saúde...


       O Velho Moraes, homem antigo, fiel seguidor dos sábios conselhos da vida e do almanaque, dizia que “banho frio no inverno” era muito bom para a saúde.
         Ele próprio esbanjava essa prática todos os dias, bem cedinho, em uma “tina” ali no pátio. Nas manhãs de geada muito grande, pegava um cabo de vassoura para quebrar a grossa lâmina de gelo que se formava na parte de cima do barril. Depois mergulhava, rapidamente, com prazer, tirando toda a vantagem do choque térmico para continuar olhando a vida de frente e a gripe pelas costas. Dessa forma, dizia, mantinha os médicos e os remédios sempre afastados de seu leito.
         Doutrinava os filhos para que seguissem exemplo tão saudável. A gurizada ouvia o conselho, com respeito, mas logo mudava de assunto para não correr o risco de ter que enfrentar a terrível façanha. Um que outro prometia, veladamente, tentar a proeza, um dia. Um dia...!
         O tempo ia passando e o Velho Moraes não usufruía a satisfação de ver, pelo menos, um dos filhos experimentar o gélido gosto da saúde verdadeira. Naquela época, a educação era severa e rígida mas isso não era tudo para obrigar os filhos a se entregarem à maravilhosa loucura de um “banho frio”, do lado de fora, nas memoráveis madrugadas de junho e julho. Obrigava, isto sim, os filhos a estudarem, trabalharem e serem honestos.
         Proibia-os de jogar, fumar, beber e saírem à noite em dias de semana.
         Certa feita, João, o mais velho, resolveu dar uma escapada para encontrar-se com a secreta e misteriosa namorada. Na calada da noite pulou a janela.
         Era junho e as estrelas pipocavam no manto escuro e frio do firmamento, repleto de aventuras. O coração de João batia forte pela emoção do perigo e pela ânsia de jogar-se nos braços da amada.
         Tão suave era a noite e tão quentes os carinhos do encontro que o fujão esqueceu-se das horas. Já quase pisando a barra do dia, João tratou de voltar ao ninho, sigilosamente, sem deixar vestígios do pecado.
         No exato momento em que escalava o muro, percebeu que a janela do quarto do severo pai abria-se, ritualmente. Em face do enorme contratempo, pensou rápido, terminou de pular o muro e jogou-se de corpo e alma na água gelada do tonel. O Velho Moraes olhou aquilo e surpreso, incrédulo mas rebentando de satisfação para comentar, com aprovação:
         -“Ah, muito bem, João – pelo menos um filho meu acaba de entender as benesses do banho frio... muito bem, João! Coragem...!”
         João saiu dali tiritando e foi descongelar-se na beira do fogão. Enquanto tentava recuperar o calor, mastigava um biscoito de polvilho, pensando, quietamente, nas aventuras da noitada. Quantas vezes mais teria de jogar-se na tina fria para pagar por seus desejos de amor e poesia?...?
         Olhando a brasa do espinilho, pensava: - não sabia se banho frio no inverno era bom para a saúde (?) – sabia, no entanto, que amar perigosamente era motivo suficiente para viver ou morrer – eternamente...

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O Rastro


          A moderna técnica de vender tem muitos lados e diversos desdobramentos.
        A melhor escola do ramo continua sendo a do Oriente Médio (judeus, árabes, gregos, turcos, etc) mas a mais sofisticada é a norte-americana, sem sombra de dúvidas. E é de lá que vem mais uma novidade.
        Para engrossar o fantástico contexto do “marketing”, surge, agora, um artifício que ainda vai dar muito o que falar. Chama-se “rastreabilidade” do produto. Consiste em perseguir, acompanhar e monitorar a mercadoria no pós-venda, até sua “última morada”. Não basta vencer – é preciso saber por que se vende, para quem se vende e o que efetivamente se vende. O objetivo é óbvio: - vender mais e vender sempre...
        Não basta vender um carro, por exemplo. É útil “rastrear” a satisfação do cliente, as circunstâncias de uso, a dependência, os novos valores advindos do ato de adquirir e utilizar as inusitadas vantagens ou desvantagens do negócio, enfim – é preciso embarcar junto com a mercadoria para ver e conhecer o “prazer” do usuário/consumidor.
        Definitivamente, terminou aquela história de “comprar só para se ver  livre do vendedor”... Agora não é mais assim. Se você comprar uma lata de salsichas, pode esperar que amanhã estarão batendo em sua porta querendo saber o que você fez com elas (?)...
-         O sr. já comeu as salsichas?
-         Olha, eu comi umas duas e as outras dividi com o cachorro...
-         Aonde está o cachorro?
Pode acreditar que atrás das portas e das vitrines, embaixo dos tapetes, na dobrada das esquinas, sobre o telhado, atrás das cortinas, no sótão, no portão, no vestíbulo, na cozinha, dentro do armário, nos pingentes do lustre e dentro do Box, têm um exército de incansáveis e determinados “rastreadores” espionando sua reações e “acompanhando o produto”. Você, que acaba de adquirir um colchão, não se surpreenda se, na calada da noite, e no bom do sono, for, gentil e sutilmente, despertado só para responder uma meia dúzia de perguntinhas assaz oportunas e deveras importantes para o progresso mercadológico de nosso louco mundo consumista. Não se surpreenda!...
Tem gente rastreando preservativo! Tem...! Em que pese os eventuais constrangimentos, a nova técnica veio para ficar e se disseminar.
Fico imaginando a divertida ou perigosa situação de rastreamento de mercadorias menos ortodoxas tais como bombas-relógio, granadas, empadas de rodoviária, xaropes para tosse, anti-diarréicos, Chevette 84, gravatas-borboleta, papel H, grampos para cabelo, zíper, galochas, disco dos Abóboras, erva mate de pauzinho, relógios Rolex (com dois erres), caninha da boa, óculos rai-ban, calças brim coringa, uísque paraguaio, etc, etc.
Cá com meus botões, dou asas a imaginação só para acompanhar o esforço de rastreamento de um par de alpargatas compradas ontem pelo heróico Abedão, bem ali no singelo (e sortido) armazém do Anicleto. Já pensaram?...?
Abedão comprou (e pagou – uma em cima da outra)  um par de alpargatas 42, cor preta, pedindo pé e cancha e um bom tempo para sová-las. Os atentos e resolutos rastreadores foram atrás. Logo observaram que Abedão, desavisadamente, pisou em algo inconveniente reforçando um clima cujo  odor espantaria qualquer mortal. Depois, notaram que Abedão sequer tirava as ditas cujas nem para dormir. Mais adiante, constataram que o consumidor não as calçava por inteiro, preferindo usa-las, displicentemente, como chinelos, deixando liberto o garrão. No baile, testemunharam a presença das ditas alpargatas esfregando o chão naquela vanera baguala e, vez por outra, pisavam os pés da prenda e chutavam o xale da sogra. Na hora de bebericar uma “guaraná”, lá estava Abedão, com um pé na alpargata e o outro solto e feliz da vida. Os rastreadores estavam sobrando em contentamento com o desempenho do produto. Ali estava um consumidor feliz... Estava??...
Pois sim – quando percebeu que estava sendo escandalosamente, observado, Abedão não se faz de rogado: - Tirou um pé da 42 preta e sampou na orelha de um rastreador. A outra, encostou no nariz do companheiro  intrometido, deixando-o desmaiado por muitos dias. E assim se conta a historia dessa nova técnica de vendas que tem tudo para dar certo. Ah, se tem...!

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Gárgulas


A pequena semente de alecrim rodeara muitas vezes antes de sumir na fenda da gruta selvagem. Um barulhinho sutil de infinito engulia a seiva da mata, perenizando o movimento da vida. Lá dentro caberia o universo inteiro...
Os olhos de Pedro também entravam terra adentro, marejados de saudade.
Lágrimas antigas eram gentilmente sorvidas pelo diminuto buraco, para todo o sempre ou nunca mais...
Que mistério existe nesses sumidouros da existência, que tragam, sedentamente, toda a leveza do ser?...? Serão gargantas de deuses esfomeados aliviando a angústia da eternidade?? Ou bocarras de diabos famintos, degustando a fraqueza das criaturas e das coisas??...
Dia após dia por ali escoam os procedentes líquidos do mundo, cumprindo-se a insondável vontade de uma força estranhamente natural.
E nesse caldo submergem pedaços da vivência, punhados da história, grãos de circunstâncias, farelos da vontade, átomos da paixão, fractais da dúvida, moléculas da fé, gotas de humanidade, poeira de verdades, sementes, pétalas, troncos, contas, paus e pedras...
É o sangue derramado na batalha; a saliva pingada no desejo; o suor vertido no trabalho; a adrenalina conjugada no susto; o espirro da saúde; o chorume do ataúde; a água benta no batismo; a cachaça do aflito; o vinho da vitória; a chuva da memória; o granizo da loucura...
Por ali tudo se esvai...
É o rio dos conquistadores; o mar dos descobridores; a gasolina das guerras; o chá dos penitentes; o suspiro dos viventes; a lagoa dos mistérios; a equação dos critérios; a cerveja dos inconscientes; o xarope dos desvalidos; o escarro dos prometidos; o soluço dos desgarrados; a bênção dos escolhidos; a tosse dos inveterados...
Misteriosas gárgulas que engolem o universo inteiro. De lá nada reflui – nada volta. A engolição definitiva é a marca da vida – é a mossa da existência...
Nada sobra – tudo padece. Tudo vai e nada retorna. Tudo sucumbe e nada permanece. Essa é a realidade das fendas naturais que cercam a humanidade que se deixou viver. Esse é destino dos que nada querem e tudo aceitam. Essa é a sina dos que perderam o referencial da intromissão.
Esse é o fim. Ou será o começo??

Bom Negócio


Lafaiete Barroso acabara de preencher sua ficha no Hotel Central.

Vinha de muito longe e pretendia permanecer algum tempo na cidade. No espaço que perguntava profissão ou atividade escreveu simplesmente corretor.
Subiu ao quarto, esparramou suas coisas e mais tarde desceu para jantar.
Muito simpático e extrovertido foi logo entabulando uma conversa cordial com o porteiro e com o garçom. Quando lhe deram oportunidade, perguntou, de cara, quem era quem no lugar (?).
Porteiro e garçom divergiram um pouco nas primeiras informações mas, por fim foram unânimes em afirmar que o homem mais rico e importante da paróquia era o Coronel Fulgêncio, que morava bem ali do outro lado da praça. Lafaiete gravou o nome conversou mais um pouco e depois pediu licença para recolher-se.
No outro dia, depois do café, pegou sua pasta e foi ter com o Cel. Fulgêncio.
Na porta da mansão foi atendido por uma preta, muito preta vestindo um avental branco, muito branco.
“Bom dia. O coronel Fulgêncio está?
“O coroné tá drumindo...”
“Pois então entregue meu cartão e diga que volto mais tarde.”
“Sim sinhô.”
Além do nome e da profissão o cartão de Lafaiete tinha impressa uma intrigante e insinuante afirmação: “ Terras do Brasil virgem – compra hoje, economiza amanhã e lucra sempre.”
Lá pelas onze horas Lafaiete voltou a casa do Coronel. Foi mandado passar para a sala principal. Comodamente sentado em uma poltrona como se fora um trono lá estava o Coronel Fulgêncio segurando com as duas mãos uma bengala. Não levantou-se para o forasteiro, apenas fez um pequeno gesto indicando para que tomasse acento na cadeira próxima. Barroso apresentou-se, disse de onde e a que viera. O Coronel ouviu calado e sério as explicações do corretor:
“São terras a espera de um homem de visão como o senhor”- concluiu o vendedor.
“E quando custam?” – perguntou o coronel, com autoridade.
“Por enquanto não lhe custam nada.”
“Mas como isso?”.
“São terras devolutas – sem dono. Preciosamente perdidas nesse imenso País. Eu só quero seu assentimento para poder negocia-las”.
“Mas como vou lhe dar permissão pra vender o que não me pertence?”
“Se o senhor me disser sim já são suas. Eu apenas preciso do seu nome para encaminhar esse negócio”.
“Mas eu não estou lhe entendendo”.
“É simples. O senhor só me diz que quer as terras e eu as negocio para o senhor. Se por ventura eu não conseguir passa-las adiante no espaço de um ano o senhor fica com elas por apenas 20 contos de réis”.
O preço era dado de barato.
“Mas e a escritura?”.
“O senhor assina nesta simples autorização de venda e eu deixo como garantia o meu relógio”.
O coronel examinou o relógio – era um Pathek Fhilip de ouro que valia no mínimo cinco vezes o preço das terras.
“E quem me garante que esse relógio é seu?”.
“Aqui está o certificado de propriedade e eu estou assinando um termo de penhora a seu favor”.
“Então se no espaço de um ano o senhor não vender as terras que eu não comprei,eu pago 20 contos de réis e fico com o seu relógio (??)”
“Isso mesmo. O senhor tem raciocínio muito rápido e não esta de costas para um bom negócio”.
O coronel, que era bastante vaidoso, gostou do elogio e apreciou mais ainda ganhar um belo relógio (de forma legal) por meia dúzia de patacas.
“Está feito!”
Assinaram o que tinha que ser assinado. Lafaiete entregou o Pathek com a documentação e saiu prometendo voltar breve para resgatar seu compromisso.
Cel. Fulgêncio estava eufórico com a grande cartada.
Menos de três meses depois o corretor voltou com um volumoso pacote de dinheiro.
“Coronel – isto é seu. É o produto da venda das suas terras”.
“Mas o que o senhor está me dizendo??..”
“Isso mesmo. Promessa é divida ...”- e entregou ao Cel. um maço de contos de réis que daria para comprar uma boa invernada de bois. Dinheiro para um, relógio para o outro estava terminada a estranha transação entre o corretor Lafaiete e o respeitado Cel. Fulgêncio. Despedidas e gentilezas. Na saída o coronel ainda lembrou:
“Quando surgir um bom negócio como esse não deixe de me procurar”...
Passou um ano e novamente Lafaiete se hospedou no Hotel Central. Desta vez não procurou o Coronel. Procurou amigos e conhecidos deste. Oferecia terrenos numa praia distante. Mais dia menos dia o coronel ficou sabendo da presença de Lafaiete na cidade.
Mandou um próprio chamá-lo com urgência a sua presença. Lá chagando ouviu um severo sermão:
“Mas e o senhor chega na cidade e não me procura??”
“Coronel, eu não lhe procurei porque desta vez não tenho um bom negócio”.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

LEGAL...! SÓ?...


LEGAL...! SÓ?...

         Gentilmente convidado a ministrar palestra para o público jovem, rapidamente escolheu tema atual, pertinente e revolucionário. Falaria sobre cidadania. Juntou livros, fez apontamentos, ensaiou textos, cortou palavras difíceis, preparou frases de efeito, despenteou o ralo cabelo, vestiu jeans, tênis, camiseta, pegou seu esqueleto e foi para o meio da galera.
         Recebido com certa formalidade (a palestra valia nota), foi logo despejando uma densa fornada de questionamentos sobre saudáveis cabeças povoadas de adolescentes perevas e tiques de puberdade.
         A platéia ouvia atenta a saraivada mas não conseguia esconder o susto e a confusão.
         O homem é sujeito ou objeto da história? O indivíduo é produto do meio? Os fins justificam os meios? Os meios condicionam os fins? O que é uma escala de valores morais? O que é Pátria? O que é Nação? Como se afere identidade nacional? O que é democracia? O que é demarquia? Deus existe? O Estado existe? Qual o ponto de equilíbrio das vontades coletivas? Qual a gênese das revoluções sociais? Como se identifica um líder? As sociedades são omissas ou submissas? Ignorância ou indiferença? O que é engajamento social? Com quantos paus se faz uma canoa política? O que é Federação? O Brasil tem futuro? Qual a diferença entre civilidade e civilização? O que é voto direto, secreto, pessoal e universal? O que é justiça social? O que é comunismo, solidarismo, socialismo, capitalismo e cooperativismo? Quem manda e quem obedece? Quem usufrui e quem padece?
         As moscas silenciaram porque no vasto auditório zunia o desconforto da total incompreensão... “Qual a diferença entre liberdade, independência e soberania? Onde se instala o reduto divisionário dos direitos e das obrigações? Para que servem os governos? Ser, estar, fazer, ter ou saber? Para que servem os símbolos pátrios? O eu, o nós e o todo..? Quem tem de dizer o que é direito? Por que?...”
         Um milagroso lampejo de oportunidade cutucou o entusiasmado palestrante e o fez parar e refletir. Sabiamente silenciou perante a silente e confusa platéia e deixou que apenas a sutileza dos olhares atônitos balizassem o caminho da verdade.
Verdade??...
         Na verdade, a palestra seria uma conversa amiga, um diálogo promissor, um bate-papo esperto. Nada disso acontecia, até então – por culpa exclusiva do peso morto dos conceitos, necessariamente, chamados ao tema. Mais gratificante teria sido falar, abertamente, sobre temas mais relevantes tais como “bandas de sucesso”, “novelas”, “carros e motos”, “internet”, “shampoos”, “tele-sena”, “regimes para emagrecer”, e “fórmulas para enriquecer”. Sucesso mesmo faria a palestra sobre os diversos e inusitados conteúdos do imponderável “ficar”.
Mas o palestrante neurótico tinha escolhido o assunto “cidadania” e haveria de pagar o alto preço de sua infeliz escolha.
         Olhou geral a espera de um “feedback” amigo e nada. Olhou de novo, com ostensiva indignação e nem sinal. Então resolveu perguntar, no duro e na direta:
-         O que vocês pensam a respeito???
Silêncio total.
-         Quem poderia me dizer alguma coisa a respeito disso tudo o que foi questionado???
Fala tu – fala ele – fala você. Depois de muito empurra-empurra a unanimidade da turma fez levantar um desajeitado comprido, cheio de pernas, braços e ambivalência adolescente, chamado Maiquel, para responder:
-         “Então, Maiquel, o que achas de tudo isso?”
-         “Legal...!”
-         “Legal...???”
-         “É isso aí...”
O furioso palestrante quase caiu dos ares. Pensando rápido recompôs a postura e o entendimento. “Legal” era a suprema síntese da aprovação sem “grilos”. “Legal” era tão somente a grandeza qualificada para separar o “on” do “off”; do “enter” e do “anula”; do “salvar” e do “deletar”. Esse click sumariamente verbalizado, tinha que ser, rigorosamente valorizado em prol da comunicação especial e do acerto geral.
-         Então, quero crer que vocês entenderam a importância dessas perguntas para o bom encaminhamento da cidadania.
-         Só..! ? respondeu o mesmo Maiquel, do alto de sua juventude inocente e radiante, pronto para a paz e a compleição para a guerra...
“Guerra não é legal – paz é...” Só ?...? !


sexta-feira, 16 de novembro de 2012

RISCO DE MORTE


RISCO  DE  MORTE

         Acabara de comprar a melhor cobertura da Silva Sampaio. Móveis, utensílios e comodidades viriam logo, logo, a peso de dólares, pela influência gorda de um amigo prático, estrategicamente estacionado no Ministério da Fazenda. O carro, cheio de firuletes, não faltava falar... As roupas, caras, exclusivas e feias, vestiam bem o ego e mal tapavam a mancha congênita que insistia no braço esquerdo. No pulso, um relógio condensado em ouro, marcava a hora exata de examinar o iate depois de breve telefonema ao corretor da Bolsa:
-         Alô, Jorge, aqui é o Midas Ferreira.
-         Olá. Como passa o Senhor?
-         Tudo bem, tudo bem. Olha, meu tempo é curto, portanto, presta a atenção.
-         Pois não, doutor, pois não.
-         Vende aquele lote da semana passada e compra algum outro que te der na telha.
-         Pode deixar, doutor. Tudo bem. Providenciarei imediatamente.
-         Tchau.
-         Passe bem, doutor.
O telefonema tinha lhe dado uma pequena fome. Com quem almoçaria naquela quarta-feira de sombra e vento?? Zélia, a fiel secretária, por certo já tinha providenciado tudo. Tomara não fosse aquele banqueiro suíço, branco, mole e chato que, em língua portuguesa só aprendeu a dizer “obrigado”... Não, Zélia era mais esperta do que se pensava. E o jantar, com quem seria? À noite não poderia esquecer o compromisso com Vanessa que pedia, encarecidamente, a oportunidade de agradecer-lhe o “vison” recebido no Natal. E o esboço da conferência em São Francisco será que já estava devidamente composto e corrigido? Infelizmente o Cairo teria que esperar mais seis meses por sua presença para a reinauguração das novas luminárias das Pirâmides...
-         “O Mundo merece a Paz”... – tinha dúvidas se esse seria o fim ou o começo de seu discurso na centésima trigésima Conferência das Nações, em março próximo. Na hora saberia como resolver. Se não soubesse, seus diletos assessores dariam a última palavra. Ah, Monte Carlo: Chatíssima seria a escala na Etiópia para abraçar aquelas esquálidas crianças e assinar um cheque na frente das câmeras. Será que o Freitas fechou aquele negócio das minas na Bolívia? E as madeiras da Amazônia? E o petróleo do Paraguai? Problemas e mais problemas... Assim acabaria ficando irremediavelmente doente... Onde penduraria o quadro de Milton? Será que poderia ser ao lado do deVan Gogh? E os tapetes persas? A raridade faz a grande valia desse artesanato. Mais de setenta poderiam comprometer essa constante. Seria preciso vender alguns. Trocar, seria mais digno. Trocar por esmeraldas. Mineiras, quem sabe (?). Acontecesse o que acontecesse, teria que comparecer ao coquetel que o Presidente vai oferecer ao Mundo Livre, para consolidar o capitalismo. E o Bill? O que faria com o Bill? Seria prático e objetivo: daria rosas a Nancy e um par de botas a Bob. A questão da África do Sul preocupava, mas meia palavra sua seria  suficiente, para resolver as coisas. Pior era o impasse entre as tribos afegãs. Será que teria de usar napalm para acalmar os ânimos?? Qual o número da conta bancária dos hemofílicos da Irlanda? “Se não me engano, hoje é o aniversário do meu alfaiate”. “Qual o nome do chefe do meu Projeto de Mísseis”?
-         “O Irã me preocupa. O que farei para baixar a inflação brasileira?”
Ah, finalmente em casa – lar, doce lar.
-         Mãos ao alto, isto é um assalto.
-         Tudo bem, o que queres?
-         O teu prestígio – a tua imortalidade.
-         Isso eu não te dou, por dinheiro nenhum.
-         Então vou te matar.
-         Pode matar.
E o bandido apertou o gatilho duas vezes mas só conseguiu ouvir o sinal metálico do controle remoto trocando de canal. Pra sempre. Eternamente... Clic!

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Tempo X Tempo


           Leio em uma dessas publicações pára-científicas, mal habituadas a nos reduzir a desprezíveis amebas, que o Sistema Solar (todo o Sistema) – está em processo de deslocamento a uma vertiginosa velocidade de (pasmem) – “dois milhões de quilômetros por hora” – e sabe lá Deus para onde (?)...
         Apesar da conhecida (e comprovada) lentidão de certos fenômenos “estrictamente” terrenos, lá vamos nós, céleres, lépidos e fagueiros, com o pé na tábua, para o choque (inevitável) com “Aquilo” – nos confins do Universo.
         Enquanto isso, vamos desenrolando o vasto e pesado novelo de nossas circunstâncias mundanas. A fila da Previdência leva mais de uma hora para andar dois metros. Levamos quatro anos ou mais para trocar de governo e, portanto, de diretriz administrativa. A burocracia insensível leva meses para atender nossos comezinhos (e justos) pleitos. É longa e penosa a espera por uma aposentadoria merecida. Gastamos horas e horas amealhando riquezas para, um dia, podermos comprar mercadorias perecíveis tais como saúde, juventude e aventura.Mastigamos uma penca de anos para crescer e outro tanto para amadurecer; décadas para perguntar e outras para responder; gordas fatias de tempo para prometer e polpudos nacos para cumprir. Mas, lá vamos nós, de rebenque em pé, “a dois milhões de quilômetros por hora”... Para onde?? Quantos centímetros anda, e que tempo leva, a lesma  (apressada) para engolfar sua pressa?? E o que pensar daquele presidiário queimando longas horas de suas contas de solidão e mágoas?? E o menino correndo atrás da pandorga para alçar a vontade e perdoar o tempo?? E o mendigo roendo eras para resgatar sua dignidade?? E os milhões de adolescentes perdendo centenas de segundos para conquistarem a inconsciência?? E as generosas doses de tempo servidas nos bares da vida, entorpecendo a vontade?? E os longos volteios do poeta catando rimas para sua musa predileta?? E a infindável espera da reconciliação?? E as vastas estações para o amadurecimento do perdão?? E os séculos para a compreensão da fé?? E a infinidade de horas para tecer a colcha da felicidade??... E as incontáveis dúzias de minutos para entender (e aceitar) a verdade?? E a imensidão do espaço para encher de humanidade??...
         De fato, somos muito lentos e, reconhecidamente, vagarosos. Mas nosso Sistema está a dois milhões de quilômetros por hora...
         No fundo, somos vetustas lesmas de jardim, em busca de “sociedade”!...
         Somos morosos, quase letárgicos, mas o Universo corre sem parar.
         Perdemos tempos e tempos conjugando verbos mas o Universo empilha, rapidamente, os substantivos da vida. E os adjetivos, de quem são? São do tempo, do vento e da sorte... E o sujeito, o objeto e o predicado?? Esses são da consciência. Por quê?? Porque a ela a natureza confiou a guarda do contraditório universal: - minutos para viver e morrer mas a vida inteira para inventar ou descobrir esperanças – a dois milhões de quilômetros por hora...  

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A Lógica Castelhana


Aportei em Montevidéu por via rodoviária, em pleno fevereiro, transpirando por todos os poros. Na chegada, tentando driblar os percalços do conturbado trânsito urbano naquele fim de sexta-feira, sintonizei uma das emissoras locais para me inteirar das últimas. De pronto, a voz tonitroante de um polpudo locutor de ofício – e cantador de tangos, boleros e afins, nas horas vagas – dava conta de um bárbaro assalto ao Banco de La República, eivado de tiroteos com ruidosas metrajetas e similares. Os assaltantes eram dois e tiveram a má ideia de refugiarem-se em um prédio próximo de seis andares. A polícia, atenta e competente, seguiu-os até lá, num efusivo festival de bombas e balazos... Um dos meliantes quedou-se, finalmente, muerto por reagir à prisão... e o outro, lamentavelmente, jogou-se das alturas, passando desta para a melhor...
Na sequência Del noticiero policial surgia o caso de uma muchacha que havia desaparecido, misteriosamente, nas imediações do Cassino Carrasco. O desaparecimento da donzela era tão misterioso que as fontes oficiais estavam preferindo sugerir tratar-se de um caso raro com a participação inequívoca de inoportunos Ets, pilotando furtivos objetos voadores não identificados...
Mais adiante o locutor/tenor relatava a história de um presidiário que havia conquistado alforria por conta e ordem do perdão natalino. Menos de uma semana de soltura foi preso novamente, flagrado em outra e grave contravenção. Preso de novo, para as devidas reprimendas, foi solto dias depois por determinação judicial. E mais uma vez voltou a delinquir, confirmando a triste e preocupante estatística da reincidência. O dito cujo cidadão de honradez imelhorável foi então trancafiado, definitivamente, para apreciar o sol quadrado pelo resto dos tempos...
Dois dias depois, fui fragorosamente multado por estacionamento indevido.
Paguei a multa sob protesto e botei a boca no trombone:
- En mi País no se hace esto con los turistas... sentenciei, alto e bom som, para a educada funcionária de la chefatura. Ela limitou-se a comentar:
- No confunda País com “Montevidéo”...
Não confundi e fui reclamar do guarda de plantão:
- Eu não sabia que aqui não podia estacionar...
O gendarme, imperturbável, proferiu autoritariamente:
- No saber será lo mismo que no leer... E bem acima do carro estava uma legível placa de no estacionar, sutilmente camuflada pelo denso, frondoso e refrescante galho de um plátano castelhano.
Em face de tantos sobressaltos, dúvidas e contratempos procurei o ombro amigo de Pablo, ilustre diretor de uma Emissora co-irmã.
Expus minhas razões, preocupações e contrariedades.
Pablo respirou sabiamente do fundo de uma gorda risada solidária e falou:
- Mire, Pascoal, las cosas son muy sencillas. Los muchachos asaltantes no fueran suficientemente competentes. Está visto... La muchacha misteriosamente desaparecida, hay que ver, tenía un novio...! El ciudadano de “honradez inmejorable” no tenía gusto por libertad. Y la punición que te aplicaran fue tremendamente injusta.
Así son las cosas, así es la vida... porque, em verdad, le digo: uma cosa es uma cosa, otra cosa es otra cosa... 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Móvel


      Jarbas, dado e dedicado ao saudável e cansativo exercício da novidade, resolveu adquirir a última geração de móvel modulado, coisa do terceiro milênio... “Pratex” é o nome desse achado cibernético.
         Pintava novidade na praça e lá estava o Jarbas largando em primeiro lugar. Sob os ruidosos protestos da mulher, conseguiu pilotar, com maestria e diplomacia, a meia dúzia de infelizes carregadores até a parede sul de seu gabinete.
         OBS: O tal móvel, tão moderno, não era necessária ou suficientemente desmontável. Mais adiante veremos que esta razão tem razões que a própria loucura desconhece.
         Pronto! Meu lar, meu reino, lá estava a nova “geringonça”, cheia de portas, gavetas, luzes e botões. Parecia um mastodonte funk desfalecido.
         Ali poderia acomodar o som, a televisão, o vídeo, o computador, o bar, a biblioteca (parte dela), jogos, enfeites e alguns troféus.
         Era ou não era uma maravilha?...
         A esposa, de nariz torcido, comentou profeticamente ao vento, agora mais escasso:
-         “Quero ver quem vai arrancar essa coisa daí quando nos mudarmos...”
É claro, Jarbas, com seu espírito de inquieta vanguarda, vez que outra inventava mudanças. A monotonia do mundo era mera e desprezível exceção na dinâmica de Jarbas... Viver era mudar, mudar era viver!
Feliz com o brinquedo novo tratou logo de acomodar a parafernália tecnológica, cultural, lúdica, alcoólica, informática, etc, etc. É tudo comandado por suaves e anatômicos botões na direta ou no controle remoto. Remotíssimo, por sinal...
Comodidade é para quem pode e quer, quer e pode. “A modernidade deve ser a Bíblia dos que gostam de olhar a vida de frente” – costumava filosofar ligeiramente depois de duas cervejas.
Mas tal prodígio não poderia ficar assim anônimo, entre quatro paredes, curtindo um ostracismo prematuramente injusto. Era preciso convidar amigos, parentes e vizinhos para uma solene sessão de testes, apreciação e devaneios.
Dito e feito. No fim de semana foram todos convocados para um pequeno e despretensioso convescote.
Os chegados foram logo conduzidos para o reduto do espetáculo. Jarbas não cansava de mostrar e demonstrar a novidade. Admiração de uns, desconfiança de outros, inveja de todos, formou ali um clero de encantados e pasmados.
“Podem usar a vontade” – disse Jarbas, com voluntariosa prodigalidade.
O vizinho da frente, amigo fiel das coisas do bar, tomou a dianteira e foi saciar sua sede. Pretendendo servir-se generosamente de algo que pegue fogo, apertou o botão mais próximo e foi surpreendido com a nona de Bethoven.
Quase caiu de costas. Depois do susto precisou beber além da conta.
O cunhado, um furioso abstêmio, querendo achar um livro de Proust foi praticamente constrangido a beber um Martini doce, com azeitona e tudo.
Pior foi o caso do Alcibíades, noveleiro de quatro costados que além de perder aquele capítulo decisivo foi obrigado a recompor o quebra-cabeça ouvindo Mickel Jackson.
Pequenos acidentes de percurso. Era preciso reler o manual de instruções. Só isso.
Lido pausadamente em voz alta para que todos ouvissem, memorizassem e entendessem, deu-se nova partida à sessão dos experimentos.
Dessa vez foi o tio Fermino a próxima vítima. Apertou os botões e nada aconteceu. Apertou de novo e apagaram-se as luzes da casa. Apertou mais uma vez e deu descarga no banheiro da empregada. Entregou o controle para o Jarbas, como se entregasse um tijolo quente.
“Esse troço está mal ligado”, disse Climaco, muito ciente e convicto.
“Essa coisa é mal assombrada”, gritou histérica Geni perto da porta da rua.
“Nada disso, gente, a coisa funciona maravilhosamente” interferiu Jarbas, ansioso com os acontecidos. Apertou os botões, deu umas batidinhas na lateral, abriu a terceira gaveta, chutou a porta da esquerda e acendeu a televisão 30 polegadas, no justo momento em que o tele-locutor informava que os deputados tinham decidido diminuir seus salários...
Nesse momento todos levantaram e foram saindo de fininho, sem despedidas, cheios de medo porque o fim do mundo estava por acontecer...
O móvel de Jarbas era, de fato, uma assombração difícil de remover...
Ou não era??...

Qual?...


         Numa das mansões da aristocracia riograndense recebia-se gente de vários rótulos. Gente importante, gente média e comum.                                                                                                                                                                                                                 
            A chefia da casa um dia chamou Aristotelino, um serviçal humilde, mas ativo, e recomendou: - Aqui estão duas roupas de recepção. A bege é para ocasiões comuns e a branca será para acontecimento de gala. Você deverá vestir uma ou outra conforme o momento. Esteja atento e seja educado!
            O mordomo improvisado saiu faceiro e foi guardar os ternos. Aristotelino – Lino, para os íntimos – estava vivendo seu momento de suprema glória.
            Na verdade, Lino era um próximo, muito próximo que nasceu e cresceu ali nas redondezas do Castelo. De família modesta, suficientemente ignorante, bom sujeito, inteligente e muito solícito, tinha recebido um leve traquejo para comportar-se entre excelências. Sabia carregar uma bandeja, abria portas, fazia mesuras, servia à francesa, carregava malas, enfim, era mordomo.
            Certa feita, chegou gente esquisita, vestindo chapéus estranhos. Lino avaliava o grau de importância das visitas olhando primeiramente os extremos – cabeça e pés. Aprendeu a reconhecer autoridades pelos sapatos e pelos chapéus. Dizia que os sapatos das pessoas importantes brilhavam mais e os chapéus brilhavam menos. O contrário, geralmente, denotava gente menos qualificada. Tal critério ficava rigorosamente por conta e risco do juízo de Aristotelino. Mas dessa vez estava difícil descobrir  quem era quem. O pessoal estava muito bem vestido, mas descalço. Um ou dois vestiam sandálias. E os chapéus? Bem, na verdade, não eram chapéus – eram turbantes, véus, panos ou coisa que o valha. Lino, indeciso, correu para o quarto e não sabia o que vestir, a bege ou a branca?... Desceu rápido e na primeira oportunidade perguntou em voz alta à dona da casa na frente das visitas: - Dona Eufrásia – a branquinha ou a pardinha...?
- A branca, Lino – disse, entredentes, Dona Eufrásia.
Depois desse incidente decidiu-se que Lino deveria usar sempre e para todos, o terno branco. Mudaria apenas a cor da gravata de tope. Preta para ocasiões solenes e vermelha para o cotidiano.
Um dia viu descer do carro um sujeito todo enlameado. Subiu e vestiu logo a gravata vermelha. Quando vinha chegando perto ouviu os donos da casa pronunciarem “excelência”. Deu meia volta e atou a gravata preta.
Quando se virou, viu e ouviu gargalhadas e tapinhas nas costas. É gente para gravata vermelha – pensou. Voltou à cena e viu as demais pessoas da casa fazendo demorada e solene reverência. É gente para gravata preta...
Estava, realmente, confuso. Não se aguentou, bateu no ombro da anfitriã e perguntou: - A pretinha ou a coloradinha?...
- “A preta, Lino...”
O homem embarrado era simplesmente o Barão do Rio Branco que chegava contando o contratempo que tivera em um atoleiro ali na chegada.
Aristotelino morreu mordomo, velhinho e curvado. Foi enterrado de branco.
E a gravata? Por via das dúvidas ataram as duas...
Nunca se sabe!...

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O que é isso, barreiro?


          Bons tempos aqueles em que se podia confiar no tempo. Naquela época o inverno vinha no inverno, o verão no verão, e assim por diante. Mas, hoje...(?)!... quem pode confiar??
           Vivemos o auge do tempo dos fenômenos. Há um clima estranho no ar e vice-versa.
Dia desses, vi algo inusitado (para mim) e, de certa forma, preocupante:  um “barreiro” fazendo sua casa no chão e na beira de uma sanga.
Pelo que sei – (será que sei?), barreiro é um bicho que voa e não morre de amores por água. Mesmo assim tentava erigir seu castelo bem na planície, ao sabor das inundações e dos charcos especiais. Que razões terá para assim se comportar! Por que muda seus hábitos? O que é isso, barreiro?
Você, um competente e inspirado construtor que sempre ergueu sua casa em lugares altos, “seguros”, práticos e funcionais – agora, sem um motivo aparente, resolve eleger o patamar das formigas, das cobras, das lagartixas, etc..., por que? O que é isso?
E percebam a contradição, o paradoxo, o absurdo. No tempo em que o barreiro fazia sua casinha no ápice dos postes, no travessão das porteiras e na cumieira dos galpões tinha os “pés no chão”.
Mostrava coerência e boa conveniência com seus conhecidos e costumeiros comandos intuitivos. Mas agora que põe os pés no chão, sem senso crítico, perde pêlo e sua decisão perde critério, oportunidade e sentido... Sentido? Oportunidade? Inundação?
Em tempo – Alguém mais experiente me socorre, informando que o barreiro não enlouqueceu nem está querendo liderar a nau dos amotinados. Dizem os entendidos que o barreiro está, isto sim, sendo mensageiro das decisões e diretrizes do governo natural. Há quem jure que o barreiro “sabe” que não vai chover tão logo e por isso não teme levantar seu barraco nos rés do chão, bem na beira da sanga. Será? É muito provável!
O barreiro pode estar errado? Até pode – dizem os técnicos. Por sensibilidade ou outra limitação do gênero, bem pode que o “barreirinho” tenha lido mal o recado da mãe natureza.
E terá sido um pequeno engano, sempre involuntário, de parte a parte. A natureza jamais mente para si própria. E o barreiro é pena de sua vasta asa, portanto, sabe o que se passa no coração dos prognósticos naturais, salvo, como disse, rápidos enganos. No fundo, o barreiro sabe que a natureza sabe  que o barreiro sabe que a natureza sabe e faz. Existe uma cega confiança mútua.
Se a natureza disse que não vai chover tão logo, por que não levantar um belo recanto onde a água não chegará?
Se a natureza falou – tá falado. Salvo melhor juízo, o homem pode confiar no barreiro. E o barreiro pode confiar no homem?
E por que não? E por que não?...


quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Eleitores


“Viver é testemunhar” – disse meu Compadre, em momento de profunda inspiração, apreciando o desfile das misses na TV. De certa forma, concordo com ele. Mas minha historia aconteceu bem longe do vídeo e meu testemunho, garanto, é mais isento que o dele.
         Foi numa quebrada de rua que sintonizei o diálogo de um  par de eleitores legitimamente estatísticos. No mínimo quarenta anos separavam os gajos.
-         Gostei de ver – essa questão do Brasil definir seu Sistema de Governo, já é uma “lança em África”.
-         Qual é, cara? – essa transa de sistema é careta, pacas. A África é do Tarzan e Tarzan está com a Jane e não abre.
-         Não brinca, moleque. O assunto é sério. É por aí que virá o colossal progresso de nossa Pátria.
-         Sem essa. Já descurti esse lance de pátria. Barato é o mundo, o universo, o todo. Sacou?
-         Mas que linguagem estúrdia, meu filho... o Brasil é a terra do futuro. Um dia vai ser a maior potência.
-         Potência é a mina que vende sabonetes na TV...
-         Mas que insolência. É preciso que se bote um cobro nisso. A juventude está, definitivamente, perdida. O Governo tem que tomar providências.
-         Tem nada – o “gova” também se liga numas... Podes crer.
-         Não acredito. Vou escrever aos meus deputados.
-         Qual é? Esses pintas só sabem transar grana e papo furado.
-         Não mesmo. São homens de bem, preocupados com o nosso destino. A propósito, qual é o teu Partido, meu filho?
-         Sem essa – o meu lado é o do amor, da paz e do vento que transa o depois...
-         Eu não te entendo. Tua dialética é muito confusa.
-         Ih! Sujou. Ninguém tá afim de dia. Bota noite aí e se rola o lero. Numa boa.
-         Então queres que eu diga “noitilética”?. Isso é um grande absurdo. Não tem sentido.
-         O sentido tá na pele dos que se curtem. Numa boa, podes crer.
-         Tua alienação me enfadonha, meu jovem.
-         Tu tá muito pra o antigo, cara. Teu papo mixa sem ninguém botar o pé. Qual é?
-         Sou um cidadão honesto. Um contribuinte. Tenho meus direitos e não vou permitir que um beldruegas, como você, venha subverter a ordem e os bons costumes de Instituições construídas com sangue, suor e lagrimas.
-         Ih! O coroa pirou de vez. Relaxa, brother. Curte um sarro. Teu baseado apagou.
-         Tua linguagem me decepciona. Não tens cultura, não tens lustro, não tens lógica. O mundo está, irremediavelmente, perdido.
-         Não esquenta, pessoa. Desliga, o mundo que se dane.
-         Não me conformo...
-         Solta e curte. O mundo vai te entender...
-         Não entende, bulhufas. Me sinto sozinho nesta trincheira.
-         Make love, not a guerra. Aché pra você.
-         Que mal pergunte: Pretendes votar na próxima eleição?
-         To chegadão nesse barato, coroa. To encarando essa, numa boa.
-         Pelo que pude entender, votar é tua firme intenção?
-         É isso aí...
-         Em quem pretendes votar? -  se não é muita intromissão.
-         Meu sim vai pro Pinta ligadão na natura, na sinceridade, no som e nesse barato todo que anda rolando nas praças e no cascalho, entende?
-         Acho que entendo. Também votaria em um cidadão desse jaez. Só discordo do som. É muito alto...
-         E o teu som é muito fraco. Não dá pra curtir. Tá sacando?
-         É. Com pouco de esforço, suponho, que um dia possamos harmonizar pianola com guitarra elétrica.
-         É isso aí. Vamos nessa...
Apertaram-se as mãos e fizeram um pacto de surdez voluntária. De comum acordo decidiram não dar ouvidos a essas bobagens que andam dizendo por aí. Prometeram votar no mesmo candidato: - um cidadão honesto, um pinta ligadão, uma pessoa de princípios um cara que curte a “natura”... Paz e amor, podes crer. Entende??...

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A Equação


Aquele assalto, semana passada, bem ali nas beiradas da praça central, foi duro golpe para a mansidão interiorana de Alencar. De repente acenderam-se as luzes urgentes do medo e da desconfiança.
            Deixar a porta destrancada? – nem pensar. O perigo anda solto, tem nome, endereço e CPF, podem crer.
            Pois, submerso nesse mar de contratempos foi que o criativo Alencar interpôs uma equação de difícil solução. Do fundo de sua imaginativa cachola trouxe a seguinte questão: - Batem à porta, vou atender, abro e topo com um sujeito bem fornido empunhando arma de fogo que imperativamente diz: “Abra o cofre!”
            Em risco, eu e minha família, não me resta outra alternativa senão abrir o cofre e entregar, de mão beijada tudo o que ali estiver, fruto de grande e demorado esforço.
Mas, cadê o cofre?
Pois é – esse é o problema.
De qualquer forma o drama está em curso: Não tenho cofre e portanto, com justa razão, o assaltante frustrado não poupará minha vida nem a dos meus. Com uma casa dessas, com garagem, sacada, luz por todo lado e não tem cofre? Morrerei por não tê-lo.
Se tivesse, apenas perderia. Cá entre nós, para alguns perder dinheiro é o mesmo que morrer! Cá entre nós...
Retomando à questão é oportuno que se diga que Alencar transita ainda apenas no terreno das hipóteses. Nada sério felizmente aconteceu, até o momento, a ele e sua família. Mas considerando seu agudo espírito precavido é indesprezível sua proposição questionativa: Se não tenho cofre, morro. Se tenho, perco. Como equilibrar essas duas porções vitais de maneira satisfatória para gáudio geral da platéia?
Como? Ora, muito simples. É só armar dois cofres (daqueles de novela, escondidos atrás de quadros mirabolantes), um para o ladrão outro para o patrão... No primeiro o suficiente, no segundo o importante.
Enganar ladrão não é fácil – mas o Alencar sabe!
Veremos... 

quinta-feira, 28 de junho de 2012

No limiar do voto


         Uma campanha eleitoral não é apenas um momento de disputa em busca de vantagens na luta pelo Poder. É mais que isso. É a oportunidade de fazer prevalentes as propostas plausíveis e possíveis para tornar reais as expectativas populares de melhores dias no que refere a qualidade de vida das comunidades, especialmente as mais necessitadas.
         E para tanto valerá mais que a intenção. Valerá a verdadeira possibilidade que os agentes públicos tem de, realmente, realizarem o máximo com o mínimo, para equilibrarem a partilha de benefícios sociais em prol dos carentes e desvalidos, sem o desprezo aos que, de fato, fazem o provimento, dessa pretensão através da produção e do inerente e compulsório tributo.
         Como contentar a todos, ou a maioria de significância eleitoral, usando discurso sectário e discriminativo?
         Além de difícil, é tarefa penosamente frustrante, dizer e propagar que a razão está com alguns e que os erros gerais estão com os demais. Quem poderá sustentar sua argumentação parcializada, se as dificuldades do contexto municipal, contemplam a todos, indiscriminadamente , pobres e ricos, pretos e brancos, representantes e representados, crentes ou ateus, partidários ou não. Estamos todos no mesmo barco e nessa navegação somos forçosamente iguais e solidários em busca de luz, progresso, realizações e justiça social.
         Qual a ideologia das premências públicas comezinhas de uma comunidade interiorana? Qual a doutrina que por si só satisfaz a necessidade do saneamento, da pavimentação, da segurança, da saúde, da educação e do lazer? Necessidades comunitárias não tem cor – tem urgência. Não tem legenda – tem vontade e trabalho honesto. Uma campanha político-eleitoral verdadeira e insofismável na intenção de pretender encargos muito mais do que cargos – de querer e comprometer empenho e compromisso social bem mais do que fisiologismos partidários, clientelismo político e assistencialismo eleitoreiro se define e se conceitua muito além dos discursos, das promessas e dos comportamentos interesseiros. Uma campanha político-eleitoral sincera, verossímil e confiável compreende mais que a veemência que caça o voto – representa, isto sim, a responsabilidade de ser e fazer, de representar e amalgamar grandezas e pleitos coletivos em prol do bem comum, em nome da genuína cidadania.
         Portanto – prezado eleitor – preste atenção especial nas entrelinhas desse embate que ora se inicia. Marque com ciência e consciência todos os ditos, fatos, fitos e atitudes daqueles que a partir deste momento vão garimpar tua vontade através do voto em busca do poder. Jamais perca o referencial dessa refrega e saiba que o desiderato do teu ato de votar é o que vale e decide.
         Não aceite palavras persuasivas nem eloquências vãs.
         Creia em compromissos factíveis e resoluções oportunas e realizáveis. Não acredite em mirabolâncias e milagres – cobre realizações e possibilidades.
         Não indague o que deve ser feito – pergunte como se pode fazê-lo.
         A esperança de todos reside na vontade de nosso povo votante.
         O eleitor pedritense – sabida e reconhecidamente politizado e esperto saberá fazer a escolha certa porque  sua decisão é a palavra definitiva para o bem desta terra e sua gente.
         Portanto:
         Vote certo – vote sempre – vote por si e por todos. Esse destino só de nós dependerá.
         No limiar do voto – com a palavra quem de fato pode decidir: - só você eleitor tem o poder de dizer para onde vamos e com quem deveremos conviver pelos próximos quatro anos. 

quinta-feira, 19 de abril de 2012

No cenário do trânsito brasileiro

        Na beira de uma grande vidraça um bodoque e muitas pedras. Ao lado de uma lata de gasolina uma caixa de fósforos. Na frente do pé um gato para ser chutado. O pavio da dinamite disponível a espera de uma centelha. Uma espora e um rebenque ofertados para a algazarra. Uma porção de tortas prontas para serem jogadas na cara da disciplina. O público em êxtase pedindo emoções de toda ordem.
         Este é o cenário das traquinagens quase inevitáveis. Como deter a alma marota de um povo desiludido do qual se cobra comportamento exemplar e não se dá oportunidade plausível para que assim o seja.
         Senão vejamos: - estradas entupidas e mal sinalizadas; uma fúria arrecadatória através de multas que compreendem ações rapinativas através  de tributos que pouco realizam em termos preventivo/educativo; legislação dúbia, parcial e as vezes inexequível; julgamentos suspeitos, cartas marcadas, supressão de amplos direitos de defesa; fé pública, corrupção e autoritarismo; falta de investimentos adequados na quantificação e qualificação de obras viárias, necessárias e exigíveis.
         Inchaço de ruas e estradas pela comercialização desenfreada de veículos pela ganância tributária; permissão sem critérios para a fabricação de veículos cada vez mais velozes e menos seguros; artifícios inibitórios descabidos e perigosamente interesseiros;
         Neste quadro será difícil esperar que a triste estatística do trânsito brasileiro se reverta e se converta em argumento de orgulho nacional. Está visto que a situação faz a contravenção.
         Como esperar que os brasileiros salvem o Brasil, se os governos, por ação, e mais por omissão, encaminham o País para o abismo do caos total. Sim, porque, da forma como as coisas acontecem, está provado que os governos lucram com a contravenção e até prova em contrário tem particular interesse que tal situação se prolongue e se aprofunde. Se assim não fosse usaria sua autoridade – sua atribuição e competência – e sustaria o descalabro – com ações próprias, justas, adequadas e oportunas que, de fato, arredem as pedras e os bodoques da vidraça; afastem o fósforo da gasolina; tirem o gato da frente do pé; não descuidem do pavio da dinamite; não patrocinem indiretamente a distribuição de esporas e rebenques e reservem as tortas apenas para o provimento alimentar dos descamisados.
         É preciso que os governos inventem e sustentem um ambiente menos forçoso para o ilícito.
         Como? Fazendo o que deve ser feito, doa a quem doer, pelo bem de todos e não apenas pela vantagem dos votos para a próxima eleição.