quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Beliscão sem dor

Finamente acomodados no recôndito da mais funda sabedoria, lá estavam os notáveis em volta de uma mesa de reuniões, mas especialmente unidos em torno de uma grande ideia: - conceber, sistematizar e editar o beliscão sem dor.  Esse era o maior desafio no limiar do terceiro milênio.
Dor sem beliscão já existia há tempos. Era preciso, portanto, inverter a lógica comezinha.
Para tudo dar certo seria decisivo começar-se do início. O que é dor? Em quantas partes se divide? Onde, como, quando e por que ocorre? A dor é igual a dor? E o beliscão? Qual seu princípio ativo? Quais as variantes e as sub-espécies? Onde é mais usual? Por que? Há beliscões que a própria razão desconhece? Quantos são? Onde se reúnem??
A fúria analítica tinha, de fato, incorporado na reunião e a coisa estava, assim, muito bem encaminhada. Pelo andar da carreta, firme e demolidor, é certo que não ficaria conceito sobre conceito, depois desse estrebuchamento filosófico.
- A dor é fina – disse o magrinho de óculos Ray-ban.
- Logo ela também é grossa – atravessou o topetudo e bolachudo que ostentava uma gravata serpentiforme.
- Se permitem os colegas – interferiu Vilvinho, coberto de rendas – devo dizer que existe a dor média, então.
- Fina, grossa ou média, o que é, afinal essa tal de dor?? – perguntou Rosalino, branco e gordo de tanto escritório.
- Eis a questão... – comentou Porfírio, que não parava de beber aquele café trazido de casa.
- Este é mais um dos insondáveis mistérios que vagueia por este mundo sem dono – sentenciou o semi-místico do grupo, charutando compulsivamente (ou convulsivamente...)
- Acho de bom alvitre passarmos para o outro termo da equação – sugeriu o vetusto professor Senzala.
- Isso, entremos logo no beliscão.
- Pois então o que é beliscão??
- Como, o que é beliscão? Não me digam que não sabem o que é um beliscão (??)...
- É óbvio que sabemos – reagiu Vilvinho, retocando a maquiagem.
- Eu acho que aqui tem gente sabendo de mais sobre beliscões...
- Eis a questão... – ressuscitou Porfírio, entre um gole e outro (de café).
- Se todos sabemos o que é beliscão e não sabemos o que é dor, como vamos formalizar a tese a que nos propomos, sem estabelecer um nexo causal entre um elemento e outro?? – questionou o professor Senzala, um verdadeiro poço de sabedoria.
- A ordem dos fatores não altera o resultado.
- Neste caso altera.
- Não se trata de fatores em ordem mas de relação de causa e efeito.
- Também não altera. Não no plano da semiótica.
- Mas no da propedêutica, sim.
- E no prisma da hermenêutica, então??
- Podem parar. Mas o que é isso?? Vocês estão birutas??...
- Rosalino tem razão. Precisamos definir e conceituar; medir e aferir; classificar e listar, de maneira dimensionalmente justa, cada uma das partes desse binômio, do contrário não saberemos o que estamos inventando.
- Três partes, caros colegas. Trata-se de um trinômio.
Pasmo geral na sala, agora completamente poluída pelas charutadas e cachimbadas de uns e outros.
- Como assim, três elementos??...
- Claro, existe o sem. (B. sem D.), entende?...
- Ora, sem é sem. É, no mínimo, o contrário de com.
- Mas o que seria com?? Por acaso seria ao lado de, sobre o, após a, ou simplesmente apesar de??
- Com é com e sem é sem, ora bolas.
- Eis a questão... – bilabiou Porfírio, já estirado sobre a mesa de reuniões.
- Beliscão sem dor é possível... eu pressinto; prevejo, tenho a intuição...
- Acreditar é preciso; um pouco de fé até que não seria mau...
- Nada disso. A ciência pode fazer tudo sozinha, com as mãos na nuca!
- Mas não por muito tempo porque isso dá dor nas costas.
- Alguém disse dor – pera aí, alguém disse dor?? Todos sentem dor nas costas quando põem as mãos na nuca??
- Sim – todos.
- Então matamos a charada. A proposta será esta: - beliscão sem mãos na nuca.
- Impraticável, inexequível e portanto invendável. Quem iria consumir um produto que traz o engodo, a mentira, a impropriedade e a improbidade em suas entranhas??
- De fato só se pode beliscar sem as mãos na nuca.
- Mas a tese tem lógica. Sem as mãos na nuca é possível beliscar e não se sente dor nas costas sem as mãos na nuca, logo...
- Nem mais logo nem menos logo. É um absurdo. De mais a mais, dor de beliscão não é igual a dor nas costas por mãos na nuca...
- A dor do beliscão é fina – disse o de ray-ban.
- Não existem beliscões sem dor. Até porque sem dor não é beliscão.
- Mas então o que é dor??
- É o que o beliscão provoca, produz, dá origem...
- Nem toda dor vem do beliscão, nem todo o beliscão produz dor.
- Acho que esse caso não tem solução.
- É possível que não tenha...
O impasse produziu um silêncio avassalador. Nesse soturno ambiente foi possível ouvir as moscas e a conversa que se despetalava na sala ao lado:
- Tudo isso passa por um monitoramento de preços.
- E de salários também.
- E o câmbio continuará flutuante??
- Embora inevitável temos que convir que a indexação é a fonte provedora do pacto inflacionário...
- A taxa de juros estabilizando-se no pico controlará a flexibilização de setores invasivos...
- Sem esquecer que a conversão pelos parâmetros projetados abluirá o meio de circulação viciada...
- Isso se não houver prática de drumping.
- Negativo. Não tem nada a ver.
- Também acho. Penso que os nichos oligopoleizados tentarão emascular a oferta de circunstância para poder fertilizar a demanda calculada.
- Com achatamento salarial?? Com achatamento?...
- O poder de compra é a questão...
- A reposição jamais absorverá as quantificações da procura residual...
- Mas pode dar início a uma equalização de mercado...
- É verdade. Não resta a menor dúvida!
Dúvida??! A turma do beliscão-sem-dor estava besta. Melhor que esse só o Plano do controle da inflação.
Não se sabe como mas alguém achou uma porta e adentrou a sala dos formuladores do Plano.
- Boa noite – desculpem – mas sem querer estávamos escutando...
- O que? Alguém ouviu? Estamos grampeados?
- Calma – nós estamos aqui na sala ao lado e foi impossível não ouvir.
- Nós (?!) – Quem está aí? Quantos são?
- Somos uns poucos amigos, discretos e na verdade não entendemos nada do que vocês estão falando.
- Isso é cascata. É espionagem boa e barata.
- Fiquem tranquilos – não queremos atrapalhar. Nós precisamos é de uma opinião. 
- Mas, afinal o que está acontecendo?
- É que nós estamos aqui ao lado tentando inventar o beliscão sem dor e como chegamos a um impasse resolvemos pedir um voto de minerva de vocês.
- Por que nós?
- Bem a essa hora da noite – madrugada já – não temos muitas opções. Como vocês estão aí com as idéias a flor da pele, assim parece pelo tom do debate, seria ótimo que nos dessem uma ajudazinha em nossa difícil tarefa.
- Bom se o caso é esse acho que os colegas não se furtariam a uma breve e sucinta opinião.
- E o que recebemos em troca? – questionou o mais insatisfeito do grupo do Plano.
- Ora, temos ainda um saquinho de amendoins e meia coca-litro. E também dois envelopes de aspirina. Não sei se serviria como pagamento (?)...
- É pouco. Não atinge nosso preço.
- Então nada feito. Isso é tudo o que nos resta.
- Eu tenho uma idéia – disse o magrela com o lápis atrás da orelha.
- E qual é, então – indagou o de Ray-ban.
- Simples. Nós resolvemos o problema de vocês e vocês tentam resolver o nosso. Trabalho paga-se com trabalho – isso é moderno, futurista, revolucionário.  Vanguarda pura.
- Tá feito.
- Inventem um Plano para salvar a Economia brasileira. Calma. Não pode ser qualquer coisa. Tem que ser um projeto inteligente, incompreensível, complexo, multifacetário, sem o fio da meada.
- Tudo bem. Tentaremos. Faremos todo o esforço para inventar um plano nunca visto. Mas vocês tem uma missão que não é das mais fáceis.
- Qual é? – Manda ver – pode vir quente que estamos fervendo.
- Nós estávamos tentando inventar o beliscão sem dor. Agora esse abacaxi é de vocês. Boa sorte...
Silêncio geral. Pasmo total!
- “Bem fica uma coisa pela outra” – disse o de ray-ban – “afinal Plano Econômico e beliscão sem dor é tudo a mesma coisa”... não é (?)!

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