quarta-feira, 27 de julho de 2011

Um Pouco

Do todo sempre resta um pouco e o pouco que resta bastaria para fazer grande o mundo e maior a humanidade. Senão vejamos.
Não é a enxada que verte poderes milagrosos ao agricultor e sim sua competência de produzir que o faz indispensável na difícil empreitada de prover. Não é o hino, nem a bandeira, que fazem a virtude do patriota e sim sua sincera vontade a favor das causas justas de sua Pátria, que gera a luminosa postura de legítima liderança e útil convivência.
Não é a forçosa circunstância coletiva que identifica e classifica o cidadão e sim a clarividência  de sua iniciativa de serviço ao próximo, que qualifica e justifica sua ação de ser, fazer e revolucionar.
Não é o lustro da batuta que faz brilhante o concerto e sim a alma e o enlevo do maestro e dos músicos que tornam imortal a melodia.
Não é a fria fórmula do medicamento que resgata a vida e reforça os contornos da existência e sim a humanitária dedicação do médico que sara as feridas, amaina o sofrimento e repõe o sol da saúde na cabeceira dos moribundos.
Não é a tosca ferramenta que ergue a obra e sim o esforçado trabalho do construtor que a faz real, sólida e permanente.
Não é a cartilha que gera a educação e sim a dedicada consciência do professor que promove o elucidamento.
Não é o breviário que encurta nosso caminho para Deus e sim a liderança do pastor e a força de nossa fé que fazem reais as sendas da caridade e verdadeiras as estradas da esperança.
Não é o pincel que dá beleza ao quadro e sim a emoção do pintor que a colore de vida e paixão.
Não é o brilhante e caro anel que ergue os castelos do amor e sim o sentimento arrebatado do amante que exige as fortalezas do afeto.
Não é o forno que faz o pão e sim o diletante trabalho do padeiro que regenera a essência de nosso provimento material.
Não é a métrica que faz a poesia e sim o ânimo libertário do poeta que rima ensejos com desejos.
Não é a barba que faz o sábio e sim sua justa razão, mesmo imberbe, que faz a certeza do caminho e o caminho da certeza!
Não é o nariz vermelho que faz a graça do palhaço e sim seu dedo mingo, cheio de magia e arte, que aponta para o reino do riso.
Não é o texto que cria e anima verdades no coração dos leitores e sim a própria inspiração das pessoas, que faz legível o escrito e válido seu sentimento.
Do todo, um pouco para que reste um tanto para não faltar um muito e não sobrar um quanto...
 Quando?... Onde? – Aqui! Hoje um pouco – cada dia um tanto!

terça-feira, 19 de julho de 2011

DEDAIS

Depois de várias tentativas, Rosália conseguira passar a linha pelo diminuto buraco de sua velha agulha. Olhos cansados, mão trêmula e luz velada, fazem penosa a tarefa costureira. Um cerzido aqui, um cosido ali, ia tecendo sua sovada solidão, atrás dos óculos turvos, do dedal amigo e das pantufas encardidas.
Gileu, o gato, agora pardo, gastava a rapa de sua sétima vida felina, sonhando com os ratos do porão. No fogão, ainda ardia o cerne daquele espinilho que Chico arrastara da tapera. Lá fora, a noite, qual manto surrado, furado de frias estrelas, caía serena sobre os ombros do pálido dia vencido. Dentro, a heróica Rosália ponteava sua treinada agulha, remendando os trapos da angústia, cosendo os andrajos do silêncio...
Agulha vai, agulha vem – quanto pensar para coser um bem!...
Maria perdeu seu filho. Que mais teria perdido Maria, se não tivesse filhos? Duas voltas de linha grossa nesse botão, para que não se despregue outra vez.
Pedro não achou sua lavra de ouro. Que ganharia Pedro, garimpando ouro, se a humanidade já se vendeu por esmeraldas? Um nó cego no cerzido para que não se rompa de novo.
Sem fé, o mundo está perdido. Sem mundo, o que seria da fé? Passa a agulha no pano grosso, com força, mas segura com o dedal pra não espetar o dedo.
Mais vale um pão na boca do que muitos na ilusão... A fome é um invento ou um descobrimento? Esta meia tem muito mais furos que tecido. Mais valerá comprar uma nova. Quanto custará? Nada menos que trinta e três remendos.
A amizade não tem limites. A inimizade também não. O colarinho não presta mais. Será preciso tirar o bolso para servir de gola. O que vale mais – o colarinho ou o bolso?...
Quem não come morre. Quem come também. Quem sacia a fome da morte? Quem?
Agulha vai, agulha vem – um dedal detém...
A felicidade está onde a pomos. Onde a pomos?
Onde está o carretel que estava aqui? Sai pra lá, Gileu!...
As linhas da mão mostram o futuro e as da testa o passado. Dizem que o destino é quem faz os traços da mão e é feito pelos da testa. Dizem...
Ih, escapou a linha, outra vez. A saudade é a filha mais velha da loucura. Ou será o contrário?...
E a paixão, o que é? E a velhice o que é?
Coser é preciso – perguntar não é.
Costurar e costurar sem parar – a barra da calça vadia, o botão do doutor, o carpim do padre, o véu da noiva, a farda do sargento, a asa do querubim, a saia da solteirona, a camisa do detento, a bandeira do Divino, o lenço do chorão, o manto da viúva, a máscara do palhaço, o cobertor do vivente, o terno do ausente, as pregas da emoção, botões da razão – retalhos do coração.
Agulha vai e vem – um dedal detém...
Quem costura minh`alma? Quem cerze meu coração?
Quem remenda meu bem e meu mal – sem usar dedal?...
Esta colcha está comida de traças mas aquele lençol esfarrapou-se de amor!...
Quem arranca minha dor? Quem conserta minha solidão?
Quero linha branca. E preta também. Onde estão os botões? Cadê o dedal? Quantos camelos, pelo buraco, passarão?
Coser é preciso – perguntar não é...
Sai pra lá, Gileu... Sai!

segunda-feira, 11 de julho de 2011

A Galinha

Naquele tempo, pagava consulta médica quem podia. Quem não podia, não podia e estamos conversados.
Seu Aristeu, homem trabalhador e sério, andava passando por dificuldades de bolso e precisou levar a filha para consultar. Dr. Lautério, um médico humanitário, nem perguntou se seu cliente tinha ou não dinheiro para pagar a consulta. Foi logo examinando a paciente, com devoção e ciência. Depois de descobrir o mal, que não era grave, passou a mão em algumas amostras grátis e alcançou ao pai dedicado.
Aristeu se desculpou com o doutor, dizendo que não podia pagar pela consulta mas que, se não levasse a mal, mandaria uma galinha de presente.
O médico disse que não se incomodasse, que não lhe devia nada e que estava tudo bem. Diante da insistência do cliente, resolveu aceitar o regalo. Quando chegou em casa, à tardinha, viu uma galinha branca e gorda que passeava, com garbo e pose, no pátio. Chamou a cozinheira e foi rápido e sumário na ordem. Com a mão direita, fazendo o gesto conhecido, mandou a empregada torcer o pescoço da tipa.
-         Com arroz, doutor?
-         Mas é claro...
No jantar, Dr. Lautério achou que seu Aristeu tinha pago demais pela consulta. A galinha estava um primor – gorda e carnuda.
Dois dias depois, na saída da missa das dez, encontrou Aristeu com a filha, a mulher e um sobrinho. Foi logo abraçando o amigo e agradecendo o belo presente. Aristeu ficou meio sem jeito. Dr. Lautério não cansava de elogiar o galinheiro do cliente. Aristeu, muito honesto, não se sofreu e falou:
-         Pois é, doutor, eu queria me desculpar...
-         Desculpar por quê, vivente?...
-         Pois acontece que ainda não pude mandar a galinha que prometi. Bateu uma peste braba no galinheiro lá de casa e não sei que praga é, mas, não se preocupe que vou cumprir a promessa.
Dr. Lautério, percebendo o constrangimento do amigo, tratou de mudar o assunto e foi se despedindo, com atenção e carinho.
Na volta para casa ia matutando pra saber que galinha tinha comido.
De que vizinho seria? Estava bem boa...!
Quase no portão, topou com dona Romilda, a vizinha da esquina. Conversa vai, conversa vem, don Romilda, sempre muito queixosa da vida, relatou que até sua estimada galinha premiada, que adquirira na última exposição e que atendia pelo nome de Riquinha, tinha sumido inexplicavelmente. Estava inconsolável...
Dr. Lautério então matou a charada. Mas como explicar à dona Romilda o lamentável engano? Melhor seria não explicar. Na primeira oportunidade daria um jeito de comprar uma galinha bem premiada e presentear a vizinha, por conta e ordem da amizade e da vizinhança. Mas para não deixar o assunto sem troco, comentou:
-         Já me disseram que anda muita raposa por aí, dona Romilda.
-         Raposa, doutor?...
-         É. Onde tem galinha tem raposa, dona Romilda.
-         Ah, isso é, sim, doutor...
-         Pois é...

terça-feira, 5 de julho de 2011

Samu 192

Estamos todos torcendo para que o sistema funcione. Se não funcionar estaremos arriscando simplesmente “tudo”. É a vida que está em jogo.
     A complicada sistemática de atendimento pelo Samu 192 está aparentemente um tanto divorciada da realidade de caráter urgente. É exageradamente burocrática. Depende, fundamentalmente, de telefone, informações de natureza técnica, licenças hierárquicas e por aí vai. Tudo isso demandará tempo e tempo é decisivo quando se trata de risco de vida.
     Que não se venha, amanhã ou depois, lamentar-se a morte de alguém por “caixa-postal” ou “bip-bip”...

     Tenho curiosidade de conhecer a “cabecinha” mal formada desse mau brasileiro que inventou tamanha bobagem. Não é menor minha curiosidade e indignação em relação aos que passivamente se submetem  a esse absurdo burocrático.
     Que Deus nos salve!


Lei

-         “... assim não dá, doutor. Fiz tudo direitinho e mesmo assim não me levaram pra o xadrez. O que tá acontecendo, doutor?

-         “Calma, meu filho – qual foi teu delito?”

-         “Ué ... eu tava ali, numa boa, recebendo umas tralhas baratas que os manos esfriaram por aí”.

-         “Ah, isso é receptação, meu filho”.

-         “E daí?”

-         “Daí que isso hoje não mais dá cadeia”.

-         “E o que que dá?”

-         “Homicídio, estupro, seqüestro ... por aí!”

-         “E o furto, doutor?”

-          “Ih – isso é contravençãozinha pra jardim da infância” ...

-         “Então, hoje pra o cara conseguir um esquema de casa, comida e segurança lá no xilindró, tem que jogar pesado (?)”

-         “É isso aí – se não for primeira página não leva nem advertência”.

-         “E por que isso, Excelência?”

-         “Por causa de lei...”

-         “Mas, doutor – lei não era só o “malido da lainha”?

-         “Era – era”...