segunda-feira, 18 de maio de 2015

Alvim e as ovelhas

Alvim, gaúcho dos pampas, cultiva até hoje uma memória nostálgica de sua querência.
Por força de ofício e circunstâncias existenciais transita agora pelos entreveros imensuráveis da capital.
Por imperativo do destino sobrevive no labirinto urbano, reservando boa parte de sua alma para cultivar lembranças que são âmago de sua consciência libertária.
Homem de muitas letras e aptidões profissionais não esqueceu as origens e vela por elas sempre que possível, colocando-as no centro de suas sábias decisões humanitárias.
Como esquecer o gosto das pitangas, o barro das sangas, o canto do galo madrugador, o alarido dos cachorros, o trotear dos cavalos amigos, o pega-pega das pastagens nativas, o lambari dos açudes, a sábia conversa dos galpões, o apojo do entardecer, as alpargatas, a bombacha, a água da cacimba, as tranças da Ritinha, o laço, as boleadeiras, o tirador, o pôr do sol, a coxilha da esperança, a inquietude do quero-quero e o churrasco campeiro.
Churrasco de ovelha!
Ah – que saudade!
Cabeça de ovelha quietamente degustada na imensidão do imponderável...
Costelas – e aquela paleta bem assada para degustar calmamente pensando no infinito.
Como é lindo o pago campeiro!
Um quarto de ovelha feito com arte, conhecimento e graça, em fogo brando para matar a fome da alma...
Alvim está lá mas seu espírito campereia diuturnamente por aqui reculutando sua história.
Homem de fé, dia desses, cumprindo o imperativo de seu credo, foi a missa, satisfazendo os mandos de seu animismo. Contrito, rezou e ouviu, com imenso respeito o sermão do “pastor”.
Tudo o que o pregador pregou era demais conhecido, reconhecido e aceito pela índole bondosa e mansa de Alvim. Benevolantemente disse amém a tudo o que se pregava naquele sermão de praxe. Quase que hipnoticamente tudo se aprovava sem qualquer reproche. Mas quando o orador citou “ovelhas” em sua alocução foi impossível não pensar (e cobiçar) aquele churrasco feito a partir desses animais tão pródigos e teológicos, e de gosto incomparável...
Sem medo de pecar, Alvim reportou-se a suas raízes e viu no espeto uma suculenta ovelha assando em fogo de chão para, enfim, saciar a fome e muito mais que isso – para matar a saudade de seu eu pendurado naquele heroico Sarandi do banhado...
Há pecado nisso?
Não – não há!
Alvim degustará essa carne de ovelha, ajoelhadamente, como serve a qualquer crença religiosa humanamente possível.
E siga o rito (e o churrasco) com um só rebanho (de ovelhas) e um só pastor.
Amém – e bom apetite!

Ave Alvim!

Cena doméstica


Pai e filho adolescente sentados lado a lado no sofá na frente da TV, tentam se reencontrar depois de longa e penosa jornada cotidiana.
O pai, homem de muitos labores estampava uma estafa justificada, após o abate de muitos leões naquele dia útil. O filho adolescentemente entediado, com o mesmo nada de sempre para fazer, clicava obsessiva e compulsoriamente seu tablete nº 6, já sobejamente ultrapassado pelo nº 7, mais caro e com meio giga a mais de tecnologia embarcada.
O pai recuperando-se do cansaço vira-se para o filho e pergunta:
“- E aí, campeão, tudo bem?”
“- Tudo!” – responde o piá, nem um pouco afim de papo. Seu mundo naquele momento é a telinha cheia de janelas abertas para o mundo informático: - face, whatsapp, twitter e aquela hemorragia de joguinhos irados, não permitem meio segundo de desatenção.
“- Como foi teu dia?” – insiste o pai cansadão, tentando achar o fio da meada de uma comunicação familiar fundamental?
“- Legal” – responde o filhão laconicamente, hipnotizado pelo touch de seu Ipod.
“- Cadê tua mãe, rafa?”
“- Sei lá – está fora de área.”
“- Como assim?”
“- Sei lá pai – está por aí ...”
“- E a Maria?”
“- Sei não, pai.” E dêle click no tablet. Não tem nada mais interessante que isso, no momento, para o garotão.
“- Pô – meu filho – quero conversar...”
“- Qual é (?) pai – tu tá atrapalhando.”
“- Atrapalhando o que, moleque? – Quero bater um papo.”
“- Tá bom. Segura um pouco – tô na boa com a turma...”
“- Pô – Rafa. Que turma? O que que há?”
“- Pô, careta não enche...”
“- Tu me respeita, rapaz – larga essa coisa senão vai ter...”
“- Tá legal, coroa – fala.”
“- Não filhão. Não é assim. Só queria saber de ti...”
“- Tô legal.”
“- Só isso?”
“- Só!”
“- O que fizeste hoje?”
“- Nada de mais – Tô aí...”
E assim seguiria esse “diálogo” do absurdo por séculos, sem nada de positivo para se colher.
O pai, depois de um dia inteiro de ausência, por força das circunstâncias de uma pesada jornada de trabalho para botar feijão na mesa, queria um lúdico momento de paz familiar onde pudesse resgatar a reconfortante conversa amorosa com os seus.
O filhão, naquela fase difícil do crescimento, onde seu próprio umbigo traça as diretrizes da vida e impõe os rumos decisivos do mundo, está bem distante dessas coisas de conversa olho no olho, boca contra ouvido, proximidade física e outras chatices desse embrulho careta chamado família...
Queiramos ou não, o fato é que se instalara entre uns e todos um descomunal abismo de anti-comunicação.
E nesses termos,  diante de tal realidade seria perda de tempo insistir por vias convencionais, e diga-se, antiquadas, para se ter o tradicional diálogo familiar.
Mas como não está morto quem peleia, o dedicado chefe da família, num lampejo genial, recobrando um byte de forças, desinstala-se do sofá, vai até sua mochila e saca dali seu Iphone 5, que felizmente ainda guardava uma réstia de carga na bateria.
Com tela cheia compôs e checou uma mensagem por whatsapp para o filhão.
“- E aí, queridão (?) – tudo bem contigo?”
“- Oi paizão – tudo bem. E tu?”
“- Aqui estou, filhão – morto de saudade.”
“- Pô – legal pai – eu também. Como foi teu dia?”
“- Muito trabalho, filho. A coisa não está fácil.”
“- É isso aí, coroa – bota prá quebrar. Te amo.”
“- Também te amo, filhão.”
“- E a mana, Rafa?”
“- Não sei – deve estar no twitter – tenta conectar...”
“- Oi Maria – tudo bem?”
“- Oi melhor pai do mundo. Tudo bem. Fala rápido porque estou na melhor e mais irada falação com a Re e com o Fabi.”
“- Tudo bem – só queria saber de ti. (?)”
“- Tudo na boa, velhão – fica frio.”
“- Que bom, filhota. Só mais uma coisinha. Cadê tua mãe.”
“- Oi paizão – tá no Face, claro!  Entra lá...”
“- Ok – vou entrar. Oi Madalena? Estás por aí?”
“- Oi meu amor. Por onde andaste, seu sumido?”
“- Trabalhando, Lena – trabalhando – ih – p. q. t. p. – acabou a bateria ...”
E aí a vida (moderna) fala: - põe o dispositivo na tomada, e amanhã com carga cheia tenta baixar o aplicativo “amor com, sem ou apesar da internet”.
Será que vai funcionar?...
Só os deuses do “sistema” saberão responder.
Mas uma esperança esperta espreita atrás da coxilha, louca para entrar em cena: - a anunciada (e ameaçadora) falta de energia elétrica, para os próximos dias.
Sem tomada viva para carregar os aparelhos certamente, em breve, estaremos desconectados. Eis nossa grande chance de uma conexão familiar legal, proativa e promissora. Viva – a vida doméstica está salva!
E aí, diremos o que uns para os outros?
Eu arrisco: - “pô – e essa luz quando voltará? Pô! Pô!
Qual é?”!...

Maioridade Penal


É fato que a realidade da lei brasileira favorece a instrumentalização do crime, através da inserção do menor em ações anti-sociais.

A inimputabilidade de indivíduos menores de 18 anos, propicia e, de certa forma,  incentiva a prática de atos criminosos, pela falta, de dispositivo penal próprio que coíba e discipline condutas do tipo no contexto da maioridade convencionada. E isso é, ou tem se constituído em problema real e atual em nossa sociedade.

O debate sobre a redução da maioridade penal, que assumiu caráter urgente, nos dias de hoje, pela lauta exposição de fatos críticos que tem povoado nossos noticiários, compromete os parâmetros de harmonia e sustentabilidade da própria sociedade como ente de conteúdo contratual,  no simplismo dos à favor de um lado e os contra de outro. Isso é pouco para objetivar solução satisfatória.

É preciso intelectualizar, culturizar e de preferência racionalizar a discussão, bem longe de pruridos ideológicos e ou de questiúnculas politico/partidárias.

As últimas pesquisas demonstram que quase 90 por cento do povo brasileiro indica que algo deve ser feito a respeito.

Aqui e ali aparecem argumentos do tipo: - “sou contra porque a realidade prisional de nosso país é caótica e não resolverá a questão, porque, enfim, lhe falta o prodígio da ressocialização, condição fundamental para se mandar qualquer ser para a cadeia e com mais razão ainda um “menor” indefeso!

Mas isso só, não é argumento suficiente para arguir contrariedade absoluta ao tema, da mesma forma que não é plausível ser contra a eletricidade por não se ter um poste adequado para sustentar, tecnicamente, os fios que conduzem essa benésse.

Os meios não podem condicionar os fins,  da mesma maneira que será ignorância, em clima de fúria tribal, descartar os benefícios da aviação simplesmente porque não se tem um campo de pouso circunstancialmente apropriado para o pouso.

O problema do menor inserido em atos criminosos com efeito de progressão geométrica sem qualquer dispositivo de proteção ao contrato social, é real, atual, fático e dramático.

Aos que “carnavalescamente” – diria alienadamente, verberam oposição absoluta a proposta de redução da maioridade penal, rogue-se que os mesmos apresentem sugestões plausíveis, e acima de tudo, exequíveis para encaminhar solução para o problema.

O problema existe – está aí para todos nós sorvermos e sustentarmos onerosamente.

Não basta ser apenas contra. Se a redução da maioridade penal não é tentativa objetiva para encaminhar solução para o problema do compulsório uso do menor instrumentalizando a criminalidade, então, o que será?

É preciso apontar alternativas: - apresentar propostas para mudar esse status quo.

Não é razoável ser apenas contra o debate do tema assim como não é inteligente ser contra a água tratada simplesmente porque ainda não se tem o cano próprio para sua condução. Dizer-se que se é contra a redução da maioridade penal porque  a situação prisional brasileira é cruel, será o mesmo que condenar a geometria porque a régua está quebrada...

A aviação, a eletricidade, a geometria e a água potável, são descobrimentos, inventos e conquistas inalienáveis da humanidade sob todos e quaisquer aspectos. A redução  da maioridade penal se insere nesse contexto dos valores absolutos que sustentam uma sociedade na simetria da civilidade de convivência, e na qualidade de vida para seu progresso e permanência.

Só dez por cento do mundo ainda não decidiu a seu favor nessa questão. O Brasil, infelizmente, está nesse time indeciso: - não sabe o que quer porque, na verdade, não sabe o que, nem como, nem quando e quanto pretende.

Quando, enfim, teremos a maturidade e a sabedoria de admitir, com humildade dignificante, que o que é bom para o mundo para nós mal não é nem será?...!