segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Tempo X Tempo


           Leio em uma dessas publicações pára-científicas, mal habituadas a nos reduzir a desprezíveis amebas, que o Sistema Solar (todo o Sistema) – está em processo de deslocamento a uma vertiginosa velocidade de (pasmem) – “dois milhões de quilômetros por hora” – e sabe lá Deus para onde (?)...
         Apesar da conhecida (e comprovada) lentidão de certos fenômenos “estrictamente” terrenos, lá vamos nós, céleres, lépidos e fagueiros, com o pé na tábua, para o choque (inevitável) com “Aquilo” – nos confins do Universo.
         Enquanto isso, vamos desenrolando o vasto e pesado novelo de nossas circunstâncias mundanas. A fila da Previdência leva mais de uma hora para andar dois metros. Levamos quatro anos ou mais para trocar de governo e, portanto, de diretriz administrativa. A burocracia insensível leva meses para atender nossos comezinhos (e justos) pleitos. É longa e penosa a espera por uma aposentadoria merecida. Gastamos horas e horas amealhando riquezas para, um dia, podermos comprar mercadorias perecíveis tais como saúde, juventude e aventura.Mastigamos uma penca de anos para crescer e outro tanto para amadurecer; décadas para perguntar e outras para responder; gordas fatias de tempo para prometer e polpudos nacos para cumprir. Mas, lá vamos nós, de rebenque em pé, “a dois milhões de quilômetros por hora”... Para onde?? Quantos centímetros anda, e que tempo leva, a lesma  (apressada) para engolfar sua pressa?? E o que pensar daquele presidiário queimando longas horas de suas contas de solidão e mágoas?? E o menino correndo atrás da pandorga para alçar a vontade e perdoar o tempo?? E o mendigo roendo eras para resgatar sua dignidade?? E os milhões de adolescentes perdendo centenas de segundos para conquistarem a inconsciência?? E as generosas doses de tempo servidas nos bares da vida, entorpecendo a vontade?? E os longos volteios do poeta catando rimas para sua musa predileta?? E a infindável espera da reconciliação?? E as vastas estações para o amadurecimento do perdão?? E os séculos para a compreensão da fé?? E a infinidade de horas para tecer a colcha da felicidade??... E as incontáveis dúzias de minutos para entender (e aceitar) a verdade?? E a imensidão do espaço para encher de humanidade??...
         De fato, somos muito lentos e, reconhecidamente, vagarosos. Mas nosso Sistema está a dois milhões de quilômetros por hora...
         No fundo, somos vetustas lesmas de jardim, em busca de “sociedade”!...
         Somos morosos, quase letárgicos, mas o Universo corre sem parar.
         Perdemos tempos e tempos conjugando verbos mas o Universo empilha, rapidamente, os substantivos da vida. E os adjetivos, de quem são? São do tempo, do vento e da sorte... E o sujeito, o objeto e o predicado?? Esses são da consciência. Por quê?? Porque a ela a natureza confiou a guarda do contraditório universal: - minutos para viver e morrer mas a vida inteira para inventar ou descobrir esperanças – a dois milhões de quilômetros por hora...  

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A Lógica Castelhana


Aportei em Montevidéu por via rodoviária, em pleno fevereiro, transpirando por todos os poros. Na chegada, tentando driblar os percalços do conturbado trânsito urbano naquele fim de sexta-feira, sintonizei uma das emissoras locais para me inteirar das últimas. De pronto, a voz tonitroante de um polpudo locutor de ofício – e cantador de tangos, boleros e afins, nas horas vagas – dava conta de um bárbaro assalto ao Banco de La República, eivado de tiroteos com ruidosas metrajetas e similares. Os assaltantes eram dois e tiveram a má ideia de refugiarem-se em um prédio próximo de seis andares. A polícia, atenta e competente, seguiu-os até lá, num efusivo festival de bombas e balazos... Um dos meliantes quedou-se, finalmente, muerto por reagir à prisão... e o outro, lamentavelmente, jogou-se das alturas, passando desta para a melhor...
Na sequência Del noticiero policial surgia o caso de uma muchacha que havia desaparecido, misteriosamente, nas imediações do Cassino Carrasco. O desaparecimento da donzela era tão misterioso que as fontes oficiais estavam preferindo sugerir tratar-se de um caso raro com a participação inequívoca de inoportunos Ets, pilotando furtivos objetos voadores não identificados...
Mais adiante o locutor/tenor relatava a história de um presidiário que havia conquistado alforria por conta e ordem do perdão natalino. Menos de uma semana de soltura foi preso novamente, flagrado em outra e grave contravenção. Preso de novo, para as devidas reprimendas, foi solto dias depois por determinação judicial. E mais uma vez voltou a delinquir, confirmando a triste e preocupante estatística da reincidência. O dito cujo cidadão de honradez imelhorável foi então trancafiado, definitivamente, para apreciar o sol quadrado pelo resto dos tempos...
Dois dias depois, fui fragorosamente multado por estacionamento indevido.
Paguei a multa sob protesto e botei a boca no trombone:
- En mi País no se hace esto con los turistas... sentenciei, alto e bom som, para a educada funcionária de la chefatura. Ela limitou-se a comentar:
- No confunda País com “Montevidéo”...
Não confundi e fui reclamar do guarda de plantão:
- Eu não sabia que aqui não podia estacionar...
O gendarme, imperturbável, proferiu autoritariamente:
- No saber será lo mismo que no leer... E bem acima do carro estava uma legível placa de no estacionar, sutilmente camuflada pelo denso, frondoso e refrescante galho de um plátano castelhano.
Em face de tantos sobressaltos, dúvidas e contratempos procurei o ombro amigo de Pablo, ilustre diretor de uma Emissora co-irmã.
Expus minhas razões, preocupações e contrariedades.
Pablo respirou sabiamente do fundo de uma gorda risada solidária e falou:
- Mire, Pascoal, las cosas son muy sencillas. Los muchachos asaltantes no fueran suficientemente competentes. Está visto... La muchacha misteriosamente desaparecida, hay que ver, tenía un novio...! El ciudadano de “honradez inmejorable” no tenía gusto por libertad. Y la punición que te aplicaran fue tremendamente injusta.
Así son las cosas, así es la vida... porque, em verdad, le digo: uma cosa es uma cosa, otra cosa es otra cosa... 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Móvel


      Jarbas, dado e dedicado ao saudável e cansativo exercício da novidade, resolveu adquirir a última geração de móvel modulado, coisa do terceiro milênio... “Pratex” é o nome desse achado cibernético.
         Pintava novidade na praça e lá estava o Jarbas largando em primeiro lugar. Sob os ruidosos protestos da mulher, conseguiu pilotar, com maestria e diplomacia, a meia dúzia de infelizes carregadores até a parede sul de seu gabinete.
         OBS: O tal móvel, tão moderno, não era necessária ou suficientemente desmontável. Mais adiante veremos que esta razão tem razões que a própria loucura desconhece.
         Pronto! Meu lar, meu reino, lá estava a nova “geringonça”, cheia de portas, gavetas, luzes e botões. Parecia um mastodonte funk desfalecido.
         Ali poderia acomodar o som, a televisão, o vídeo, o computador, o bar, a biblioteca (parte dela), jogos, enfeites e alguns troféus.
         Era ou não era uma maravilha?...
         A esposa, de nariz torcido, comentou profeticamente ao vento, agora mais escasso:
-         “Quero ver quem vai arrancar essa coisa daí quando nos mudarmos...”
É claro, Jarbas, com seu espírito de inquieta vanguarda, vez que outra inventava mudanças. A monotonia do mundo era mera e desprezível exceção na dinâmica de Jarbas... Viver era mudar, mudar era viver!
Feliz com o brinquedo novo tratou logo de acomodar a parafernália tecnológica, cultural, lúdica, alcoólica, informática, etc, etc. É tudo comandado por suaves e anatômicos botões na direta ou no controle remoto. Remotíssimo, por sinal...
Comodidade é para quem pode e quer, quer e pode. “A modernidade deve ser a Bíblia dos que gostam de olhar a vida de frente” – costumava filosofar ligeiramente depois de duas cervejas.
Mas tal prodígio não poderia ficar assim anônimo, entre quatro paredes, curtindo um ostracismo prematuramente injusto. Era preciso convidar amigos, parentes e vizinhos para uma solene sessão de testes, apreciação e devaneios.
Dito e feito. No fim de semana foram todos convocados para um pequeno e despretensioso convescote.
Os chegados foram logo conduzidos para o reduto do espetáculo. Jarbas não cansava de mostrar e demonstrar a novidade. Admiração de uns, desconfiança de outros, inveja de todos, formou ali um clero de encantados e pasmados.
“Podem usar a vontade” – disse Jarbas, com voluntariosa prodigalidade.
O vizinho da frente, amigo fiel das coisas do bar, tomou a dianteira e foi saciar sua sede. Pretendendo servir-se generosamente de algo que pegue fogo, apertou o botão mais próximo e foi surpreendido com a nona de Bethoven.
Quase caiu de costas. Depois do susto precisou beber além da conta.
O cunhado, um furioso abstêmio, querendo achar um livro de Proust foi praticamente constrangido a beber um Martini doce, com azeitona e tudo.
Pior foi o caso do Alcibíades, noveleiro de quatro costados que além de perder aquele capítulo decisivo foi obrigado a recompor o quebra-cabeça ouvindo Mickel Jackson.
Pequenos acidentes de percurso. Era preciso reler o manual de instruções. Só isso.
Lido pausadamente em voz alta para que todos ouvissem, memorizassem e entendessem, deu-se nova partida à sessão dos experimentos.
Dessa vez foi o tio Fermino a próxima vítima. Apertou os botões e nada aconteceu. Apertou de novo e apagaram-se as luzes da casa. Apertou mais uma vez e deu descarga no banheiro da empregada. Entregou o controle para o Jarbas, como se entregasse um tijolo quente.
“Esse troço está mal ligado”, disse Climaco, muito ciente e convicto.
“Essa coisa é mal assombrada”, gritou histérica Geni perto da porta da rua.
“Nada disso, gente, a coisa funciona maravilhosamente” interferiu Jarbas, ansioso com os acontecidos. Apertou os botões, deu umas batidinhas na lateral, abriu a terceira gaveta, chutou a porta da esquerda e acendeu a televisão 30 polegadas, no justo momento em que o tele-locutor informava que os deputados tinham decidido diminuir seus salários...
Nesse momento todos levantaram e foram saindo de fininho, sem despedidas, cheios de medo porque o fim do mundo estava por acontecer...
O móvel de Jarbas era, de fato, uma assombração difícil de remover...
Ou não era??...

Qual?...


         Numa das mansões da aristocracia riograndense recebia-se gente de vários rótulos. Gente importante, gente média e comum.                                                                                                                                                                                                                 
            A chefia da casa um dia chamou Aristotelino, um serviçal humilde, mas ativo, e recomendou: - Aqui estão duas roupas de recepção. A bege é para ocasiões comuns e a branca será para acontecimento de gala. Você deverá vestir uma ou outra conforme o momento. Esteja atento e seja educado!
            O mordomo improvisado saiu faceiro e foi guardar os ternos. Aristotelino – Lino, para os íntimos – estava vivendo seu momento de suprema glória.
            Na verdade, Lino era um próximo, muito próximo que nasceu e cresceu ali nas redondezas do Castelo. De família modesta, suficientemente ignorante, bom sujeito, inteligente e muito solícito, tinha recebido um leve traquejo para comportar-se entre excelências. Sabia carregar uma bandeja, abria portas, fazia mesuras, servia à francesa, carregava malas, enfim, era mordomo.
            Certa feita, chegou gente esquisita, vestindo chapéus estranhos. Lino avaliava o grau de importância das visitas olhando primeiramente os extremos – cabeça e pés. Aprendeu a reconhecer autoridades pelos sapatos e pelos chapéus. Dizia que os sapatos das pessoas importantes brilhavam mais e os chapéus brilhavam menos. O contrário, geralmente, denotava gente menos qualificada. Tal critério ficava rigorosamente por conta e risco do juízo de Aristotelino. Mas dessa vez estava difícil descobrir  quem era quem. O pessoal estava muito bem vestido, mas descalço. Um ou dois vestiam sandálias. E os chapéus? Bem, na verdade, não eram chapéus – eram turbantes, véus, panos ou coisa que o valha. Lino, indeciso, correu para o quarto e não sabia o que vestir, a bege ou a branca?... Desceu rápido e na primeira oportunidade perguntou em voz alta à dona da casa na frente das visitas: - Dona Eufrásia – a branquinha ou a pardinha...?
- A branca, Lino – disse, entredentes, Dona Eufrásia.
Depois desse incidente decidiu-se que Lino deveria usar sempre e para todos, o terno branco. Mudaria apenas a cor da gravata de tope. Preta para ocasiões solenes e vermelha para o cotidiano.
Um dia viu descer do carro um sujeito todo enlameado. Subiu e vestiu logo a gravata vermelha. Quando vinha chegando perto ouviu os donos da casa pronunciarem “excelência”. Deu meia volta e atou a gravata preta.
Quando se virou, viu e ouviu gargalhadas e tapinhas nas costas. É gente para gravata vermelha – pensou. Voltou à cena e viu as demais pessoas da casa fazendo demorada e solene reverência. É gente para gravata preta...
Estava, realmente, confuso. Não se aguentou, bateu no ombro da anfitriã e perguntou: - A pretinha ou a coloradinha?...
- “A preta, Lino...”
O homem embarrado era simplesmente o Barão do Rio Branco que chegava contando o contratempo que tivera em um atoleiro ali na chegada.
Aristotelino morreu mordomo, velhinho e curvado. Foi enterrado de branco.
E a gravata? Por via das dúvidas ataram as duas...
Nunca se sabe!...

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O que é isso, barreiro?


          Bons tempos aqueles em que se podia confiar no tempo. Naquela época o inverno vinha no inverno, o verão no verão, e assim por diante. Mas, hoje...(?)!... quem pode confiar??
           Vivemos o auge do tempo dos fenômenos. Há um clima estranho no ar e vice-versa.
Dia desses, vi algo inusitado (para mim) e, de certa forma, preocupante:  um “barreiro” fazendo sua casa no chão e na beira de uma sanga.
Pelo que sei – (será que sei?), barreiro é um bicho que voa e não morre de amores por água. Mesmo assim tentava erigir seu castelo bem na planície, ao sabor das inundações e dos charcos especiais. Que razões terá para assim se comportar! Por que muda seus hábitos? O que é isso, barreiro?
Você, um competente e inspirado construtor que sempre ergueu sua casa em lugares altos, “seguros”, práticos e funcionais – agora, sem um motivo aparente, resolve eleger o patamar das formigas, das cobras, das lagartixas, etc..., por que? O que é isso?
E percebam a contradição, o paradoxo, o absurdo. No tempo em que o barreiro fazia sua casinha no ápice dos postes, no travessão das porteiras e na cumieira dos galpões tinha os “pés no chão”.
Mostrava coerência e boa conveniência com seus conhecidos e costumeiros comandos intuitivos. Mas agora que põe os pés no chão, sem senso crítico, perde pêlo e sua decisão perde critério, oportunidade e sentido... Sentido? Oportunidade? Inundação?
Em tempo – Alguém mais experiente me socorre, informando que o barreiro não enlouqueceu nem está querendo liderar a nau dos amotinados. Dizem os entendidos que o barreiro está, isto sim, sendo mensageiro das decisões e diretrizes do governo natural. Há quem jure que o barreiro “sabe” que não vai chover tão logo e por isso não teme levantar seu barraco nos rés do chão, bem na beira da sanga. Será? É muito provável!
O barreiro pode estar errado? Até pode – dizem os técnicos. Por sensibilidade ou outra limitação do gênero, bem pode que o “barreirinho” tenha lido mal o recado da mãe natureza.
E terá sido um pequeno engano, sempre involuntário, de parte a parte. A natureza jamais mente para si própria. E o barreiro é pena de sua vasta asa, portanto, sabe o que se passa no coração dos prognósticos naturais, salvo, como disse, rápidos enganos. No fundo, o barreiro sabe que a natureza sabe  que o barreiro sabe que a natureza sabe e faz. Existe uma cega confiança mútua.
Se a natureza disse que não vai chover tão logo, por que não levantar um belo recanto onde a água não chegará?
Se a natureza falou – tá falado. Salvo melhor juízo, o homem pode confiar no barreiro. E o barreiro pode confiar no homem?
E por que não? E por que não?...