terça-feira, 30 de agosto de 2011

RECEITAS LUSITANAS


“Pão de hoje; carne de ontem
e vinho de outro verão, fazem o
homem são”.
        
         Meu avô, português, com quem convivi, fraternamente, até a penúltima dobra de minha adolescência, sempre cultivou respostas lúcidas para indagações febris. Como bons amigos, seguidamente trocávamos conversas úteis, francas e afetivas. Uma distância de quase sessenta anos no tempo cronológico, era quase insuficiente para criar diferenças ou levantar barreiras nesse relacionamento, que hoje invoco com tanta saudade.
         Falávamos de política, economia, religião, custo de vida, saúde, comidas, desmandos governamentais, progresso de Portugal, atraso do Brasil – filosofia teórica e prática – e coisas do dia a dia...
         Raramente falávamos de futebol! Tal rareza encontrou seu ponto extremo na Copa de 66, quando nossa Seleção perdeu, fragorosamente, para a equipe portuguesa. Evitamos o assunto para desviarmos prováveis incômodos e desconfianças. De carnaval, não falávamos, mas sempre coloquei ouvidos para apreciar, em silêncio, sua opinião, rigorosamente crítica, a respeito dessa festa, de muito gasto e pouco proveito.
Fundidas à imagem desse amigo, estão as tiradas, as observações, as críticas, as opiniões, os conselhos, as espontaneidades e as indefectíveis receitas, tão lusitanas na forma quanto humanas no conteúdo. Nascido na região de “Trás os Montes”, província de Mirandela, a um palmo da Espanha, aprendeu a fermentar a folclórica rivalidade com os fronteiriços. E para dizer sem rebate, sentenciava: - “Da Espanha, nem bons ventos nem bons casamentos”. A quizila histórica era de fundo cultural ou circunstancial, certamente.
Mas tão antiga que não valia a pena saber a origem.
“Um bom genro – beije-se-lhe os pés”.
“Nada mais caro e perdulário do que o desnecessário”.
“Para um bom vento há sempre um mau tormento”.
Sabedoria fácil, direta, objetiva e ligeiramente ousada que me passava sem custos e condições. Certa vez, saímos pela cidade pesquisando preços de pedra de isqueiro. Se alguém se choca com a diminuta valência dessa missão, que não esqueça que toda a areia da praia é feita de grão em grão...
“Ora, não me venhas de borzeguim ao leito” – costumava dizer para neutralizar a chatice de certos assuntos ou atitudes que vêm à tona em hora imprópria.
Sentado de costas para o vazio, olho, com mansidão, as marcas que o tempo fez. Encontro nelas o contorno da promissão e vários riscos que a vida e a imensidão rascunham de graça ou por vocação.Olho o espaço e vejo todos. Olho o tempo e vejo tudo. Para que eu olhe e sempre veja, comerei o pão de hoje e a carne de ontem, regados pelo vinho do outro verão. Só assim poderei alimentar a esperança de quem, um dia, outros verão...

terça-feira, 23 de agosto de 2011

SE NÃO ME FALHA...


Quem já não teve tropeços de memória? Sim, aquele “branco”, justo quando se quer lembrar o nome de um amigo, um número de telefone, o compromisso inadiável, a conta para pagar, o aniversário, o horário, a fisionomia, a chave, documentos, momentos, a dentadura, o olho de vidro, a aliança, o colete, o verbete, o guarda-chuva, o endereço, o recado, o pecado, a história... Ah, essa memória que nos tortura!
Quem já não teve aqueles famosos lapsos inoportunos, no discurso de improviso, no encontro casual, na prova valendo nota, no cadastro valendo nada, no telefonema valendo tudo? Quem?
Segundo estudos de técnicos americanos, só o bicho homem tem a inigualável faculdade de esquecer ou de não lembrar. Alguém, por acaso, conhece vaca esquecida? Jacaré esquece? Saracura tem a capacidade de não lembrar? Os animais não esquecem, daí porque a justa comparação quando alguém se salienta na arte de tudo lembrar – esse tem memória de elefante...! Vá que seja!
Na média, somos todos um alegre bando de esquecidos.
Análise mais acurada do assunto exigiria alguns reparos sempre úteis para o perfeito entendimento da espécie humana. Na verdade, existem os desmemoriados e os distraídos. À primeira vista parecem vinho da mesma pipa mas, justiça seja feita, são bem diversos na soma total das parcelas.
O esquecido é isso por isso mesmo, e o distraído é o que geralmente lembra errado.
O primeiro, se não lembra, não diz. O segundo, porque nunca lembra, sempre diz as coisas mais disparatadas possíveis. Diz e faz...!
Certa vez, armou-se discussão em torno de um caso bem estranho: Um sujeito que foi ao baile e esqueceu a mulher em casa. Esquecido ou distraído?
“Pura distração”, dizia um grupo, “esquecimento puro e simples”, dizia outro. “Esse é um caso de legítima desmemória”, argumentava um dos debatedores. “O distraído autêntico jamais cometeria essa gafe, iria ao baile, só que com a mulher errada...!”
Debates à parte, todos sabemos o drama que é esquecermos o que deve ser lembrado.
Para tudo há remédio, dizem estudiosos do tema. Há maneiras e artifícios para baixar, consideravelmente, a estatística do esquecimento. Aconselham os práticos que se anote tudo em uma agenda. Dia, hora, o quê, quem, onde, por quê, tudo. Não tem erro desde que não se esqueça a agenda. Não é raro toparmos, diariamente, com uma legião de fantasmas, com olhar perdido, à caça desesperada de suas próprias agendas.
E hoje temos as moderníssimas agendas eletrônicas, verdadeiros prodígios da tecnologia, tão difíceis de manusear, tão fáceis de perder. Há quem diga ter visto uma novinha em folha, dormindo alegremente na geladeira, bem ali na prateleira das saladas. Pior se estivesse no forno...
Não é consolo, mas, vendo bem, todos, um dia, já mastigamos esse contratempo. Todos! Já os esotéricos recomendam recurso bem mais resolutivo para a questão. Sugerem o denominado artifício do “terceiro elemento”. O adequado “adorno referencial”, para onde convergiria a energia emanada do esforço de lembrar, faria a grande diferença na hora H do “tilt” da memória. Uma fita no dedo, uma melancia no pescoço, uma pedra no bolso, uma corrente de cachorro na cintura, uma nota de cem dólares colada na testa, uma jibóia enrolada no braço, um tamanco holandês no pé esquerdo, um lambari dentro da pasta, uma fotografia da Tiazinha no pára-brisa e outra do Ministro da Fazenda na carteira, são maneiras infalíveis de sempre lembrar e nunca esquecer.
Lembrar o quê, mesmo?...
Ah, som! Lembrar de não esquecer...

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A Crise (...do abigeato)


São tantas as conseqüências da atual crise econômica, que seria um desperdício enumera-las, pois já a sabemos quase todas de cor... Mas, não poderia deixar de referir a originalidade de uma – rara em seu conteúdo e quase dramática em sua forma.
Um especialista em crises, passeando nas proximidades da ficção, relata um caso absolutamente insólito e rigorosamente preocupante. Conta-me que, numa dessas esquinas da vagabundagem, ouviu, de passada, um diálogo surpreendente de dois conhecidos e reconhecidos abigeatários profissionais.
-         A coisa está difícil, compadre.
-         Difícil é apelido...
-         Que crise bem braba!...
-         Brabíssima!
-         Já não sobra mais nada...
-         As vezes até falta...
-         Imagine, que da última vez tive de tirar do próprio bolso para completar o serviço (!??)...
-         Não me diga!
-         Sim – paguei a gasolina, o conserto do carro (que estradas ruins!), a comissão dos tropeiros, o frete do caminhão, a taxa de embarque, a licença do transporte, a insalubridade, a periculosidade, a gorjeta dos olheiros, o pastoreio, o imposto fiscal e por aí vai...
-         Ué, tu paga tudo isso???
-         Claro. Comigo é tudo na legalidade. É mais seguro. Não gosto de me incomodar...
-         Bueno, aí fica complicado...
-         E mais – agora, “o cara aquele” quer prazo...
-         Mas paga um jurinho, pelo menos???
-         Que nada – quer tudo na moleza.
-         Essa gente tá ficando muito abusada...
-         Abusada e atrevida. Na semana passada, disse que ficava só com a carne de primeira. Era pegar ou largar...
-         E tu pegaste???
-         Que remédio...???
-         Isso é uma barbaridade!!!...
-         É, compadre, ninguém mais respeita o trabalhador...
-         É verdade.
-         É sim. Acho que vou trocar de ramo.
-         O que pretendes???
-         Não sei ainda. Acho que vou pegar uma dessas bocas que andam por aí...
-         Não me diz que vais te meter na política???
-         Que nada – essa também não está dando nada, atualmente.
-         Então, que boca é essa???
-         Vou fiscalizar os roubos.
-         Mas, como???...
-         Isso mesmo – vou oferecer meus préstimos para cuidar dos interesses dessa turma que vive se incomodando com o abigeato.
-         Que turma?? – a dos proprietários ou a dos “trabalhadores”??
-         As duas. Ora uma, ora outra. A que pagar melhor eu fico.
-         E se não der certo??
-         Vai dar...
-         Mas, se não der??
-         Aí, então, eu entro numa dessas filas de sem-terra e estou feito na vida.
-         Mas isso dá trabalho...
-         E tu queres casa, comida, roupa lavada e fama sem um pouco de incômodo???...
-         Ah, pois é...
-         Pois é.

Verossímel ou não, o relato comove e preocupa. Avaliar a crise brasileira pelas conseqüências práticas é tarefa que vai bem além das teorias economistas e das teses salvadoras. Parece que estamos de fato, num buraco sem fundo. É grave o problema quando nem mesmo o roubo é suficiente para a sobrevivência. Se o furto não dá, o que dará???...
Êta Brasil de guerra que sempre consegue reescrever a história com a pena do cocar do chefe...
Que chefe??
O pajé das mágicas e das mirabolâncias..., ora pois!...

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Between


       Observando a prática jornalística (incluindo rádio e televisão) especialmente a que atua distante de nossos pagos, percebi que quando faz referência a Dom Pedrito, geralmente sentencia: - lá, entre Bagé e Livramento... somos nós – a cidade do entre. Não totalmente fora de propósito poderíamos nos auto-alcunhar de “cidade between”. Por que não, se já temos a “farm-show”... Para refletir!

Cadê o dinheiro?


        Toda crise estimula perguntas. E essa econômico-financeira que se abate sobre a Terra, mais ainda. Pelo menos sugere indagações quase irrespondíveis – do tipo: - “cadê o dinheiro do Mundo?”
         Se ninguém queimou, afogou, mandou para Marte, enterrou, deixou se perder na enchente, comeu com batatas, bebeu on de rocks – cadê o dinheiro?
         Os americanos declaram que não está com eles. Ingleses, alemães, franceses, italianos juram que não está lá. Russos, eslovenos, poloneses, húngaros se queixam de que estão de cofres vazios. Os chineses estão espalhando aos quatro ventos que não foram eles que esconderam o dinheiro do mundo. Os árabes e os judeus, esmolando nas esquinas da história, está visto que não tem essa grana toda. Mas, afinal: - cadê o dinheiro?
Será que está com os coreanos (do norte)? Quem sabe com os aborígenes?... Estará com os japoneses? Ou com os nepaleses? Com os esquimós? É possível que esteja com os sul-africanos... pouco provável...
Com os paraguaios, quem sabe? Na Venezuela, talvez? Ou na Bolívia? Já sei – está em Cuba, com certeza! Certeza...?
Claro que sim – os cubanos só estão esperando o melhor momento para gastá-lo a vontade... Onde está o dinheiro?
Eureka – no Brasil, ora pois!
Manobras geniais procriaram tamanho prodígio: - enxugamos o dinheiro do mundo e hoje ditamos as regras.
Temos o poder – mandamos sem pedir.
Hoje o mundo, de joelhos, nos pede clemência.

Todos os povos aos nossos pés. É o famoso milagre brasileiro. Brasil o cofre da Terra! Mas se estamos com todo dinheiro, quem terá algum para comprar nossos produtos? Quem? Bom, aí a gente empresta reais para aqueles que querem comprar nosso ferro, nossa soja, nosso etanol. Simples assim. Se algum não quiser ou não puder nos pagar, denunciamos, mandamos prender, instauramos uma CPI e pronto.
Fazemos o maior escândalo internacional.
Só assim aliviamos os escândalos nacionais...
Aliviamos? É possível – com dinheiro tudo é possível... Será?

 

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Ordem e Método

Tenho um amigo realmente ordeiro. Na casa tudo está em seu devido lugar. Os livros na prateleira, as camisas no camiseiro, a manteiga na geladeira, a tinta no tinteiro, o dinheiro na carteira, o cigarro no cinzeiro, as galinhas no galinheiro, os filhos no travesseiro e a esposa... (onde está a esposa?) – a esposa, sua copeira predileta, está na soleira, de braços abertos e beijoqueira, ajudando a passar a limpo, com amor e graça, mais um dia de santa ordem e abençoado método.
Tenho outro que não reza pela mesma cartilha. Na casa desse as coisas estão em algum lugar. Há livros na geladeira, a manteiga esteve no camiseiro e também na carteira, tem tinta no travesseiro, um cigarro achou algum cinzeiro e na soleira tem dinheiro. Os filhos estão na estrada, as galinhas no vizinho e a mulher na prateleira. A ordem dos fatores pode não ser exatamente essa, mas isso pouco importa, pois nada altera o resultado. Resultado? – Meus dois amigos são felizes, cada um à sua maneira. E o pior é que, seguidamente, convivem, em terreno neutro, sem qualquer arranhão.
Dizem os entendidos, que ordem e método configuram uma disposição especial do espírito tendente à perfeição, à transcendência, ao nirvana, etc...
Paulo Mendes Campos contou o caso de um indivíduo que fazia tudo, banho (que banho!...), vestia-se, tomava café, lia jornal, despedia-se dos serviçais e rumava para o batente. Certa feita, foi cruelmente atropelado pelo bonde na frente de casa. Ele agia e se comportava com ordem mas o bonde, infelizmente, não...
O certo é que ordem e método são, segundo os técnicos, meios, armas ou ferramentas reconhecidamente eficazes para a consecução e o alcance de fins positivos compensadores. Dizem até que, na verdade, os meios condicionam os fins. Será?
Há quem diga, no entanto, que a genuína centelha da vida está, justamente, no caos, na desordem e no aleatório. Que a tentativa de organização é a verdadeira força motriz da vivência. Há quem diga.
Enquanto não se alinha uma posição inquestionável a respeito do tema, relato um caso pra lá de verídico, apenas para estimular o saudável debate. Com ordem, é claro:
Conheci um sujeito tão metódico e ordeiro que um dia, cansado da rotina, queimou os próprios chips e quase provoca um desastre geral.
Todos os dias limpava duas vezes os sapatos no capacho da entrada, cumprimentava o porteiro, apertava o número cinco no elevador, fazia o sinal da cruz, dava duas voltas na fechadura, beijava a esposa, acariciava os filhos, estirava-se no sofá, tomava dois goles, acendia o charuto e adormecia contando carneiros de uma raça definida. Um dia, em tempo de carnaval, limpou os sapatos no porteiro, beijou o elevador, fumou a chaves, acendeu a esposa, estirou-se no capacho, bebeu o sofá e adormeceu fazendo o sinal da cruz, ou coisa que o valha. Dessa vez, contou um rebanho inteiro de ovelhas de muitas cores que pulavam e cantavam sob o comando de um alegre pastor gordo.
Nesse dia será que teve seu momento de surpresa e liberdade?... Será?
Não sei. Não entrarei nessa discussão enquanto não se encaminhar a solução para o seguinte impasse – nascer com ordem para morrer com método, ou nascer com método para morrer com ordem?...
Enquanto isso, pensemos. Enquanto pensamos, que venha aquele sorvete de chocolate, creme e morango, com uma cereja em cima. Primeiro o creme ou o chocolate? A cereja por cima ou por baixo? E o morango?
Sejamos metódicos... ordeiros... o sorvete pode esperar. Pode?