terça-feira, 6 de maio de 2014

Cães poliglotas

           Certa feita, passeando atoamente, em uma cidade do interior uruguaio, bati numa circunstância quase surrealista.
            Na porta de uma casa comercial especializada em artigos de caça e pesca, o proprietário vociferava com seu cachorro, um pitbull bem fornido, impondo comportamento social-amistoso, através de severo discurso, recomendando bons modos, especialmente com os clientes.
            Gosto de cães mas tenho lá minhas reservas em relação a animais potencialmente perigosos pela compleição e origem. Era o caso – o cachorrão tinha todas as características de um exterminador do passado, do presente e do futuro. Suas mandíbulas e suas manoplas não desmentiam tal possibilidade.
            Mais que isso – sua índole, seu bafo, seus dentes, seu olhar diabólico rondando as pernas ou algo mais dos assustados circunstantes não deixava dúvida sobre o iminente perigo.
            Mas o dono não economizava latim em sua peroração, exigindo calma e obediência geral. Dava para entender que a voz de comando do proprietário era nosso salvo-conduto. Não se sabia até onde ou até quando...?
            Quando o animal, enfim, caiu de bruços, à força de muito grito, sentimos que o caso tinha achado seu eixo de harmonia e paz. Para alívio de todos, a fera tinha, em boa hora, ocupado seu modesto e singelo lugar de simples animalzinho de estimação cuja simpatia e mansidão comovia a todos.
            Mas recapitulemos: - as ordens ao cãozinho tinham sido proferidas em forte, audível e original castelhano. Em outro idioma esse bicho teria compreendido, aceito e respeitado recomendações de ordem e disciplina?
            Tenho lá minhas fundadas convicções que não.
            Para nós brasileiros até que a coisa poderia ser contornada sem grandes percalços. Afinal espanhol e português são línguas irmãs de origem e se fazem valer pela semelhança de sons e identidade idiomática.
            Porque, pensando bem, se o diletante dono do pitbull não tivesse a determinada e vigorosa iniciativa de conter o ímpeto de “seu melhor amigo”, ainda assim teríamos o derradeiro recurso de bravejar em claro português, uma ordem decisiva (e defensiva) do “já pra lá”, “larga”, “sai daqui”, como último apelo salvador.
           Está visto e provado, portanto, que os cães uruguaios tem boa chance de nos entenderem e nós de sobrevivermos.
            Já não se pode dizer o mesmo, penso eu, se o fato em causa, ocorrer na Dinamarca, por exemplo.
            Como dar ordens de “basta”, “sai daqui”, “volta” e “larga” em dinamarquês? Quem de nós tem na ponta da língua tal performance linguística?
            No susto até milagres do tipo acontecem. Mas a estatística não nos autoriza nada além da exceção. Podem crer!
            E se o cachorro for de convivência alemã, ou sueca, ou simplesmente da Ucrania? E aí?
            Que chance teremos nós, simples turistas, para debelar o ataque de uma criatura dessas, que só entende e respeita ordens pronunciadas em seu idioma de origem? Pouca ou nenhuma – acreditem.
            Poderíamos experimentar o inglês, quem sabe, disseminado como ferramenta de comunicação planeta a fora. A tentativa será válida tanto quanto a valentia e soberba do sapo, já meio engolido pela sucuri, que do alto de seu orgulho conseguiu pronunciar: “não está morto quem peleia”.
            Mas não nos deixemos enganar: - cães são fiéis guardiões de suas origens e não se deixam iludir por conversas diplomático-universalistas de efeito político-imperialista.
            Quem sabe, então, o aramaico (?) que segundo a história era o idioma de Cristo – o rei dos reis? Será que os cães bravos do mundo, de qualquer idioma, entenderão esse chamado teológico?
            Tenho lá minhas dúvidas.
            E o “esperanto”, a língua universal, quem sabe não seja o caminho para o adestramento e dominação desses maiores e melhores inimigos de estranhos?
            Conjecturas! Apenas isso.
            Os cães tem seus entendimentos próprios em seus respectivos idiomas e salve-se quem puder ou, por ventura tiver a virtude de um Carlos Freire, que se expressa  lépida e satisfatoriamente até em línguas já mortas.
            Salve-se quem puder dando um generoso pontapé no bicho em nome da integridade física, moral e espiritual, como último e desesperado recurso de sobrevivência. Mas ninguém há de querer e de se satisfazer com  atitude tão radical. Até porque somos genuinamente caridosos e insofismáveis protetores do reino animal. Somos?
            Se o cachorro não entender tua linguagem, entenda a dele, e faça um carinho no bicho, distribua afagos, passe a mão em sua testa  e em seu dorso amigavelmente .
            A linguagem do amor vence sempre. Se não vencer, recorra então a atitudes globalizadas desde longas datas: - corra ou morra.
            Como morrer ninguém quer antes da hora ou por motivo torpe, cante e espante os males do mundo, como manda o provérbio.
            Está visto e provado que provérbio não mata nem salva ninguém definitivamente – assim late a história – use então sua arma secreta e conclusiva: acoe e rosne, sem parar.

            Sua vida te afagará, pelo resto dos dias, pode crer.