quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Los dolares...

Certa feita fui buscar, no vizinho Uruguai, um lugar ao sol. Procurei na universidade de direito da pátria irmã, um espaço de luta por ideais humanistas.
Na entrada do prédio topei com uma proposição contundente mas na minha opinião justa e procedente. Um cartaz em letras garrafais dizia: “los dolares que sobran es la libertad que falta”.
Naquele tempo os acirramentos ideológicos iam bem além da pele. Direita e esquerda duelavam sem sossego em um cenário dominado imperativamente por russos e americanos. E a massa de manobra nessa tempestade era, inevitavelmente, a juventude estudantil.
Nesse embate valia tudo! De um lado a famosa “aliança para o progresso” e de outro a utopia comunista com “o povo no poder”.
No débito das propostas respectivas impunham-se o muro de Berlim, um escândalo de arbitrariedade, e a tolerância com regimes ligeiramente autoritários esparramados nas chamadas repúblicas das bananas, onde figurava fagueiramente o Brasil. Igualmente um abuso na visão do humanismo universal, conceito impregnante de muitas consciências alegremente juvenis. As escolhas eram romanticamente adolescentes mas os comportamentos massivos eram compulsoriamente deslocados desse fulcro. Na prática e na ação não era permitido frequentar a independência de ideias. Era forçoso empreender uma posição de confronto e assumir uma atitude impositiva.
De um lado os comunistas – de outro os outros.
E assim tecíamos nosso cotidiano dos sonhos sociais.
A dialética era pão comum na vida dessa juventude cheia de hormônios em prol do bem para todos. Idealizar era a moeda forte dessa gurizada impetuosa sem internet, sem cocaína, sem televisão e sem os entorpecentes do conforto histórico/existencial. Nossa luta era aberta, frontal e sem anestesias. Nosso confrontos não eram no grito: - debatíamos no terreno das ideias. Mas, é honesto dizer, que nos sobrava pouco espaço para pregar e preconizar uma terceira via.
O chamado alinhamento era praticamente obrigatório.
De um lado o comunismo da potente União Soviética e de outro o vigor e a abundância do poder capitalista. Morrer guilhotinados ou enforcados? Que escolha justa nos propunha o mundo?
Brigar, sofrer, sucumbir era o que a realidade de então nos impunha optar.
Sem outra a saída fizemos, tempestivamente, nossas escolhas heroicas e jamais nos sentimos acossados pelos aterrorizantes fantasmas dessa circunstância.
Pregamos, de peito aberto, com camisas desfraldadas, comunismo e capitalismo querendo, desejando e sinceramente propugnando o bem de todos, sem distinção de raça, condição econômica, credo, nacionalidade e opção política. É da natureza do jovem querer, aqui, agora e sempre, tudo para todos, como se o mundo um paraíso fosse, disponível a quem quiser ser feliz.
No entanto, apesar de todas as projeções, e em que pese as mais imarcescíveis intenções, continuamos questionando: - “dos dois lados sobram dólares para solapor a liberdade dos verdadeiros idealistas”.

Nesse contexto a idealização dos genuínos libertários ainda não foi deveras e plenamente satisfeita. E, afinal quando será?   

Calças enxutas

Diz um sábio provérbio português que: “não se pega trutas com calças enxutas”.
O dito luso é molhadamente verdadeiro.
Quem quer  o que quer tem que fazer algum sacrifício para tanto.
Salvo caprichos da sorte, tão raros e rigorosamente casuais, as benesses da vida não caem cotidianamente como chuva serena e limpa. É preciso trabalho e esforço para conquistá-las.
Atirar anzóis a água e simplesmente esperar que neles se prendam, como vítimas inermes, as vantagens da vida é aposta prá lá de presunçosa.
E sempre se pagará caro por tal expectativa!
Quem quer crescer terá que forçosamente empreender alguma iniciativa nesse sentido: - saltar, romper os próprios limites, sobrelevar-se, enfim alguma coisa terá que provocar o normal para que o intento construa seu grande momento, fora do contexto.
De calças secas jamais se conseguirá fisgar o feixe de nossa pretensão.
Essa conduta proativa está em tudo o que se quer, de fato, para satisfazer nossa necessidade de vencer.
Não basta imaginar – é preciso pegar o touro a unhas e dentes e vencê-lo na arena das vontades e das possibilidades.
Pegar trutas de calças enxutas é puro onirismo no mundo das positividades, existenciais, cada vez mais insinuante e cobrador nestes tempos da competividade compulsória.
Se alguém quer o que quer e tem plausíveis razões (e merecimentos) para tanto, que molhe suas calças, aqui e já, sem receios e caprichosos comedimentos.
Para os que verdadeiramente querem a hora é essa. Aos outros a morbidez da inércia, do medo e da passividade.
Até a sorte escolhe os que escolhem o enfrentamento e o risco. Molhe, portanto, suas calças, e terá boas chances de pescar trutas e tudo o mais que se esconde nas águas profundas da vivência.
E para não ficar atrás os gregos também dizem, sob o embalo do mesmo ânimo, que “gato de luvas não pega ratos”...
Portanto... pense, aja, arrisque.

Molhe as calças – tire as luvas e conquiste sua parte justa neste vale cheio de lágrimas...

Decisões

Conviver com a incompreensão é flagelo inevitável para os que escolhem viver sob o império da decisão. Decidir é objetivar.
Decisão é comportamento eivado de riscos que exige sacrifício e coragem acima da média.
Só, de fato, decide quem tem a ousadia de assumir escolhas. Decide quem escolhe viver e morrer sob a alça de mira da crítica, do rancor, da leivosia, do desamor, do ranço e da maledicência dos que não logram imediatistas vantagens pessoais em tais decisões.
Daí a incompreensão. Mais que isso – daí a reação egoísta que nem ao menos sobreleva motivações e circunstâncias porque, necessariamente deslocadas do fulcro umbigal dos insatisfeiros. E por isso a incompreensão – sem argumento, sem fundamento, sem senso e sem razão.
Este é o mundo – assim é a convivência no universo dos egoísmos desmesurados.

Remédio para isso? De fato não existe no plano mortal. Alguma esperança sobrevive, quando os contornos  de nossa vivência transcendem os muros de nossa insignificância humana. Aí se compreende, se perdoa, e se resigna lamentavelmente tarde. Fazer o que?

Teóricos

        Vocês já repararam que os “teóricos” de caderno – aqueles de chapéu, guarda-chuva e galochas – uns verdadeiros chatos assumidos – tem solução para tudo no embrulhado fornel de suas elocubradas teorizações (?)
           Já repararam?
         Pois os dito cujos existem e se manifestam lépida e fagueiramente para flagelo de todos nós.
         Todos sabemos que a teoria na prática é sempre outra. Mas os teóricos obsessivo-compulsivos fazem questão de não saber.
         E nessa alucinação procriam verdadeiros buracos-negros na relação do querer e do poder da intenção e da possibilidade, do desejo e de sua exequibilidade, e assim por diante.
         Quando abordo esse tema sempre me lembro da história do pescador que estendeu redes, iscou anzóis, armou arapucas e mesmo assim nem um mísero peixe pescou para o jantar. A teoria estava rigorosamente correta mas a prática foi desmacha-prazer.
         Faltou combinar com os peixes...
         Me conta um amigo que em uma mesa de pôquer um jogador tinha em mãos dois ases e uma trinca de iguais. Jogo alto para limpar a banca. Mas um dos adversários tinha um revólver carregado e pouca vontade de perder.
         Teoricamente tudo certo para o jogador dos ases mas na prática o resultado foi bem outro.
         Quando a Apolo 11 singrou os ares e teoricamente tinha tudo para conquistar o espaço, aprofundando a ciumeira na famosa guerra fria entre americanos e russos, a prática safadamente, procriou fato adverso e tudo voltou a estaca zero nesse embate técnico-político, de repercussão mundial.
         Tanto é verdade que a prática sempre se impôs a teoria, que o vetusto e genial Newton precisou que uma maçã lhe achatasse a cabeça para conceber a lei da gravidade.
         Ora pois, então, não me venham os teóricos de ofício, com suas elocubrações fantasiosas para fazer valer o que pensam sem as devidas provações na prática.
         Teoricamente ser feliz é simples. Na prática, porém, a história é bem outra, podem crer.
         A teoria diz que juntar moedas faz a riqueza. Na prática, gastar moedas faz o investimento. Quem tem razão?
         Gastar ou economizar?
         A economia é teórica. A gastança é prática.
         Quem tem razão?       
         Economizar é preciso. Gastar é inevitável.
         Um acordo providente entre teoria e prática se impõe: - sejamos teóricos enquanto possível e práticos sempre que necessário.

         E salvem-se os teóricos enquanto a prática não os degole – para sempre. 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Beliscão sem dor

Finamente acomodados no recôndito da mais funda sabedoria, lá estavam os notáveis em volta de uma mesa de reuniões, mas especialmente unidos em torno de uma grande ideia: - conceber, sistematizar e editar o beliscão sem dor.  Esse era o maior desafio no limiar do terceiro milênio.
Dor sem beliscão já existia há tempos. Era preciso, portanto, inverter a lógica comezinha.
Para tudo dar certo seria decisivo começar-se do início. O que é dor? Em quantas partes se divide? Onde, como, quando e por que ocorre? A dor é igual a dor? E o beliscão? Qual seu princípio ativo? Quais as variantes e as sub-espécies? Onde é mais usual? Por que? Há beliscões que a própria razão desconhece? Quantos são? Onde se reúnem??
A fúria analítica tinha, de fato, incorporado na reunião e a coisa estava, assim, muito bem encaminhada. Pelo andar da carreta, firme e demolidor, é certo que não ficaria conceito sobre conceito, depois desse estrebuchamento filosófico.
- A dor é fina – disse o magrinho de óculos Ray-ban.
- Logo ela também é grossa – atravessou o topetudo e bolachudo que ostentava uma gravata serpentiforme.
- Se permitem os colegas – interferiu Vilvinho, coberto de rendas – devo dizer que existe a dor média, então.
- Fina, grossa ou média, o que é, afinal essa tal de dor?? – perguntou Rosalino, branco e gordo de tanto escritório.
- Eis a questão... – comentou Porfírio, que não parava de beber aquele café trazido de casa.
- Este é mais um dos insondáveis mistérios que vagueia por este mundo sem dono – sentenciou o semi-místico do grupo, charutando compulsivamente (ou convulsivamente...)
- Acho de bom alvitre passarmos para o outro termo da equação – sugeriu o vetusto professor Senzala.
- Isso, entremos logo no beliscão.
- Pois então o que é beliscão??
- Como, o que é beliscão? Não me digam que não sabem o que é um beliscão (??)...
- É óbvio que sabemos – reagiu Vilvinho, retocando a maquiagem.
- Eu acho que aqui tem gente sabendo de mais sobre beliscões...
- Eis a questão... – ressuscitou Porfírio, entre um gole e outro (de café).
- Se todos sabemos o que é beliscão e não sabemos o que é dor, como vamos formalizar a tese a que nos propomos, sem estabelecer um nexo causal entre um elemento e outro?? – questionou o professor Senzala, um verdadeiro poço de sabedoria.
- A ordem dos fatores não altera o resultado.
- Neste caso altera.
- Não se trata de fatores em ordem mas de relação de causa e efeito.
- Também não altera. Não no plano da semiótica.
- Mas no da propedêutica, sim.
- E no prisma da hermenêutica, então??
- Podem parar. Mas o que é isso?? Vocês estão birutas??...
- Rosalino tem razão. Precisamos definir e conceituar; medir e aferir; classificar e listar, de maneira dimensionalmente justa, cada uma das partes desse binômio, do contrário não saberemos o que estamos inventando.
- Três partes, caros colegas. Trata-se de um trinômio.
Pasmo geral na sala, agora completamente poluída pelas charutadas e cachimbadas de uns e outros.
- Como assim, três elementos??...
- Claro, existe o sem. (B. sem D.), entende?...
- Ora, sem é sem. É, no mínimo, o contrário de com.
- Mas o que seria com?? Por acaso seria ao lado de, sobre o, após a, ou simplesmente apesar de??
- Com é com e sem é sem, ora bolas.
- Eis a questão... – bilabiou Porfírio, já estirado sobre a mesa de reuniões.
- Beliscão sem dor é possível... eu pressinto; prevejo, tenho a intuição...
- Acreditar é preciso; um pouco de fé até que não seria mau...
- Nada disso. A ciência pode fazer tudo sozinha, com as mãos na nuca!
- Mas não por muito tempo porque isso dá dor nas costas.
- Alguém disse dor – pera aí, alguém disse dor?? Todos sentem dor nas costas quando põem as mãos na nuca??
- Sim – todos.
- Então matamos a charada. A proposta será esta: - beliscão sem mãos na nuca.
- Impraticável, inexequível e portanto invendável. Quem iria consumir um produto que traz o engodo, a mentira, a impropriedade e a improbidade em suas entranhas??
- De fato só se pode beliscar sem as mãos na nuca.
- Mas a tese tem lógica. Sem as mãos na nuca é possível beliscar e não se sente dor nas costas sem as mãos na nuca, logo...
- Nem mais logo nem menos logo. É um absurdo. De mais a mais, dor de beliscão não é igual a dor nas costas por mãos na nuca...
- A dor do beliscão é fina – disse o de ray-ban.
- Não existem beliscões sem dor. Até porque sem dor não é beliscão.
- Mas então o que é dor??
- É o que o beliscão provoca, produz, dá origem...
- Nem toda dor vem do beliscão, nem todo o beliscão produz dor.
- Acho que esse caso não tem solução.
- É possível que não tenha...
O impasse produziu um silêncio avassalador. Nesse soturno ambiente foi possível ouvir as moscas e a conversa que se despetalava na sala ao lado:
- Tudo isso passa por um monitoramento de preços.
- E de salários também.
- E o câmbio continuará flutuante??
- Embora inevitável temos que convir que a indexação é a fonte provedora do pacto inflacionário...
- A taxa de juros estabilizando-se no pico controlará a flexibilização de setores invasivos...
- Sem esquecer que a conversão pelos parâmetros projetados abluirá o meio de circulação viciada...
- Isso se não houver prática de drumping.
- Negativo. Não tem nada a ver.
- Também acho. Penso que os nichos oligopoleizados tentarão emascular a oferta de circunstância para poder fertilizar a demanda calculada.
- Com achatamento salarial?? Com achatamento?...
- O poder de compra é a questão...
- A reposição jamais absorverá as quantificações da procura residual...
- Mas pode dar início a uma equalização de mercado...
- É verdade. Não resta a menor dúvida!
Dúvida??! A turma do beliscão-sem-dor estava besta. Melhor que esse só o Plano do controle da inflação.
Não se sabe como mas alguém achou uma porta e adentrou a sala dos formuladores do Plano.
- Boa noite – desculpem – mas sem querer estávamos escutando...
- O que? Alguém ouviu? Estamos grampeados?
- Calma – nós estamos aqui na sala ao lado e foi impossível não ouvir.
- Nós (?!) – Quem está aí? Quantos são?
- Somos uns poucos amigos, discretos e na verdade não entendemos nada do que vocês estão falando.
- Isso é cascata. É espionagem boa e barata.
- Fiquem tranquilos – não queremos atrapalhar. Nós precisamos é de uma opinião. 
- Mas, afinal o que está acontecendo?
- É que nós estamos aqui ao lado tentando inventar o beliscão sem dor e como chegamos a um impasse resolvemos pedir um voto de minerva de vocês.
- Por que nós?
- Bem a essa hora da noite – madrugada já – não temos muitas opções. Como vocês estão aí com as idéias a flor da pele, assim parece pelo tom do debate, seria ótimo que nos dessem uma ajudazinha em nossa difícil tarefa.
- Bom se o caso é esse acho que os colegas não se furtariam a uma breve e sucinta opinião.
- E o que recebemos em troca? – questionou o mais insatisfeito do grupo do Plano.
- Ora, temos ainda um saquinho de amendoins e meia coca-litro. E também dois envelopes de aspirina. Não sei se serviria como pagamento (?)...
- É pouco. Não atinge nosso preço.
- Então nada feito. Isso é tudo o que nos resta.
- Eu tenho uma idéia – disse o magrela com o lápis atrás da orelha.
- E qual é, então – indagou o de Ray-ban.
- Simples. Nós resolvemos o problema de vocês e vocês tentam resolver o nosso. Trabalho paga-se com trabalho – isso é moderno, futurista, revolucionário.  Vanguarda pura.
- Tá feito.
- Inventem um Plano para salvar a Economia brasileira. Calma. Não pode ser qualquer coisa. Tem que ser um projeto inteligente, incompreensível, complexo, multifacetário, sem o fio da meada.
- Tudo bem. Tentaremos. Faremos todo o esforço para inventar um plano nunca visto. Mas vocês tem uma missão que não é das mais fáceis.
- Qual é? – Manda ver – pode vir quente que estamos fervendo.
- Nós estávamos tentando inventar o beliscão sem dor. Agora esse abacaxi é de vocês. Boa sorte...
Silêncio geral. Pasmo total!
- “Bem fica uma coisa pela outra” – disse o de ray-ban – “afinal Plano Econômico e beliscão sem dor é tudo a mesma coisa”... não é (?)!

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Ingratidão

“Nunca cometam a ingenuidade de confiar em pretensos amigos que são maus filhos, porque é muito remota a possibilidade de que alguém, mau com os seus, possa ser um amigo generoso com estranhos”.

Esse belo, oportuno e inspirado texto pertence ao médico amigo, Dr. J. J. Camargo, cirurgião chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre.
Sobre o tema, em outro momento, trocamos correspondências, tentando aprofundar seu conteúdo, bem como compilar suas variantes. Claro que seu contrário-senso, a “gratidão”, sempre foi a matriz de nossa interlocução.
O amigo Dr. Camargo, médico diletante, tem a cotidiana missão de interagir com pessoas em compulsórios momentos de dor, medo, angústia, tensão, desespero e fragilidade. Justamente nesse clima e nesse ânimo é que falam as verdades do caráter e vigoram as virtudes do coração.
Na convivência com essa realidade da doença, amarga em sua essência e constrangedora em sua forma, é que o ilustre cirurgião consegue enxergar o âmago dos indivíduos em seus universos relacionais humanos. Foi dessa profundeza que o médico-escritor recolheu a observação supra-referida, que, infelizmente impõe-se como verossímil.
E assim se confirma que os ingratos são egoístas, invejosos e pretensiosos e por isso mesmo mesquinhos, ávaros, torpes, desbriados e definitivamente desinteligentes.
Vitor Hugo já disse: - “os ingratos são infelizes”...


sábado, 3 de agosto de 2013

Mascateando

Com a pasta cheia de promessas saiu pelo mundo para vender futuro.
Na primeira porta foi atendido por um manso velhinho curvado de olhar singelo.
- “Meu senhor tenho aqui um negócio de ocasião – preço módico, pronta entrega e lucratividade certa – futuro do bom  – é pegar ou largar”.
- Moço – o que tem esse teu futuro que me seja tão necessário?
- Tem poder, tem saúde, tem dinheiro, tem aventura. Mercadoria garantida – é comprar e levar.
- Quanto custa?
- Custa vida, fé, esperança, paciência, perseverança, empenho, força e saúde.
- Não posso comprar – não tenho a moeda que exiges.
- Faço desconto – pronto.
- Mesmo assim – não posso assumir tal compromisso, pois sei que não poderei pagar: - meu saldo é insuficiente.
- Então faça uma contra-proposta.
- Faço – pago teu futuro com meu passado.
- Não aceito. O que farei com  teu passado? A quem venderei?
- Venda aos moços – eles apreciarão tal experiência e a mesma poderá render-lhes bons dividendos.
- Negócio fechado. Passe pra cá seu passado e tome conta do meu futuro.
Com a mala cheia de passado bateu na segunda porta e foi atendido por um moço, irremediavelmente inválido.
- Rapaz, quer comprar passado?
- Ah – se quero – quanto custa?
- O presente, meu jovem – em suaves e módicas prestações mensais.
- Tudo bem, se aceitas meus trocados, faremos negócio já.
- Que moeda tens para mim?
- Tenho sofrimento, remédios, terapia, esta cadeira de rodas, duas muletas e um tédio formidável que no mercado negro vale uma fortuna.
- Negócio feito. Passe pra cá esse flagelo – vou vendê-lo por uma fortuna na primeira esquina para jovens aventureiros, inconscientes e voluntariosos, cansados da saúde, da normalidade, da riqueza, da felicidade e do bem estar.
- E o que farás com todo esse dinheiro?
- Comprarei, a preço de custo, mais futuro e mais passado.
- E aí, continuarás por aí, de porta em porta, vendendo essas bugigangas?
- Não – essa quantia depositarei no cofre de minha consciência – e tentarei viver dos gordos juros dessa experiência.
- Então, boa sorte e bons negócios.
- Obrigado, amigo. Um bom negócio nunca se deve perder...

Ajeitou suas tralhas e pegou carona na primeira nuvem rasteira em direção a fronteira.

O contrato

Nasci e por isso (ou apesar disso) contratei com a vida.
Contrato simples, bilateral, poucas cláusulas – com direitos e obrigações para ambos os lados – tudo muito justo.
Objeto de contrato: - a existência.
Obrigações: - a vida obrigava-se a conceder-se e eu de vivê-la.
Direitos: - correlatos mas  inespecíficos.
Sanções: complexo de culpa, remorso, neurose, ansiedade, frustração, sentimento de auto-comiseração, infelicidade.
Cá entre nós acho que fui profundamente lesado nessa cláusula pois tenho sobradas razões para desconfiar que a vida tem poucas chances de penar com esses castigos. Mas assinei e está assinado.
Tempo do contrato: - a vontade. Não ficou bem claro se a minha ou a da vida (?)... Salvo melhor juízo ficou subentendido que esse item obedeceria o critério da média das vontades dos contratantes, como convém a qualquer documento legítimo, honesto e pleno de equidade. Que assim seja.
Foro: - foi eleito o foro da consciência para julgar e decidir conflitos, dúvidas e casos omissos.
Inicialmente pensei ter levado vantagem nessa cláusula depois me dei conta de que não há consciência sem vida. Entenderam a jogada?...
Compreendi então, resignadamente, que a vida manobra soberanamente toda essa máquina do foro: - juízes, promotores, oficiais de justiça, cartórios e a própria legislação estão, cativamente a serviço da vida e essa rege-se por leis próprias devidamente, homologadas pela morte.

Contrato assinado: - só resta cumpri-lo. Que remédio?

A prisão do botijão

Glorinha bateu forte na porta da vizinha, pedindo socorro, pois sentira que tinha alguém no pátio interno da casa tentando roubar os botijões de gás. A notícia espalhou-se rápida como fogo rasteiro em campo seco. Em minutos a vizinhança toda descia na casa de Glorinha. Corre pelos fundos, tranca a frente, cuida o telhado, fecha o portão do lado. O cerco estava feito. A viatura da polícia chegou de pronto para dar mais brilho a aventura vespertina daquele domingo frouxo. Armas engatilhadas, estratégia na ponta dos pés, tática muito técnica, começou o trabalho de captura dos gatos. Corre para cá, corre para lá, sobe no telhado, pula o muro, encosta na parede, voz de prisão, não resista, mãos ao alto. Tudo muito rápido e profissional. Quando um dos policiais já estava com a mão no calcanhar de um dos gatunos, aconteceu o insólito: - o homem perseguido virou-se para o gerdarme e falou: - “por aqui ele não foi – eu estava cuidando”. O policial atônito olhou e viu que o solícito informante não portava nada que se assemelhasse a botijão e acreditou na informação. Sua fé fez com que desse meia volta e buscasse sua presa pelo outro lado.  Assim escapou o primeiro ladrão. O segundo aproveitando a carência de luminosidade e a concentrada atenção do público na cunheira da casa, juntou-se aos demais, e somou-se ao ruidoso clamor de justiça. Há quem diga que era um dos que mais gritava pedindo pronta punição para os fascínoras. O tempo ia passando e nada da polícia prender os amigos do alheio. Ao comandante da operação passou rápida suspeita de que tratava-se de alarme falso e de que a história deveria ser debitada a velha e conhecida histeria de dona Glorinha, assídua frequentadora do plantão policial. Seria mais um registro improcedente?? Os fatos levavam a isso. No entanto a verificação constatou que na verdade os botijões estavam fora do lugar. Aliás, muito fora de lugar. Um deles equilibrava-se no muro do vizinho e o outro estava reluzente no topo da casa. E os ladrões?? Mágica total. Sumiram como que por encanto. Depois de mais de hora volta a polícia de mãos abanando aparentemente  resignada. Para não deixar as coisas em brancas nuvens resolveu-se levar os botijões para averiguações gerais e investigações especiais. Mais de dois meses passaram e os únicos presos incomunicáveis continuam sendo os inatacáveis e balofos botijões cheios de tanto formalismo e burocracia.
Os ladrões estão por aí mas os botijões estão devidamente presos.

Bravos!