quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

PROGRAMAS




       Não porque queiram mas por rigorosa força de ofício, os meios de comunicação tem sido, literalmente, invadidos por notícias de assaltos e coberturas de seqüestro, motins, burburinhos e congêneres. Se repararem bem, e os financistas já fizeram tal conta, mais da metade do espaço da mídia já é refém desse tipo de informação. Programa, eu diria...
         Por que não providenciar patrocinadores especiais e específicos para esses formidáveis concentradores da atenção pública??
         Um assalto pela manhã, um seqüestro vespertino, uma tentativa noturna e por aí vai se adensando o script dessa interminável novela que é a convivência humana. Não preciso repetir que seria um tanto inoportuna e comercialmente inócua (para não dizer desastrosa) a propaganda de sabonetes cheirosos e perfumes extasiantes para auspiciar a cobertura televisiva e radiofônica desses eventos. Não levam ao caso. Mesmo porque, há muito foram abandonados (lamentavelmente) os crimes odorizados e os assassinatos em espumantes (e poéticas) banheiras, como certa vez sugeriu o gênio sempre reverenciado de Hitchicok. Não servem, também parece óbvio, reclames de polpudas aplicações financeiras, relógios à prova de tudo (menos de roubo), carros paradisíacos, roupas deslumbrantes, jóias ofuscantes e palacetes plantados em jardins de sonhos. Tudo isso atrai o gatuno.
         A opinião geral autoriza afirma-se que anúncios de armas (de todos os calibres), de fechaduras anti-roubo, de alarmes, tranqüilizantes (orais e injetáveis), seguros de vida, celular próprio para usar-se em porta-malas e cubículos, gás lacrimogênio, agentes de segurança pessoal, poção da invisibilidade, parrillada em pílulas especial para seqüestradores, vidros à prova de canhão, bíblias, CD do Tiririca, escolas de defesa pessoal, relatório dos precatórios, camiseta do Batmam, etc – são tremendamente procedentes nos intervalos desses sobressaltos do cotidiano. E já pensaram no alto grau promocional dessa mídia modernamente explícita e convergente?? Vejam:
         “Para assaltos matutinos, use revólveres da marca “Trabuko”, calibre 44 não falham e já vem com certificado de legítima defesa”.
         “Não deixe que a vida de sua família escoe pelo cano de uma carabina qualquer assine hoje seu seguro de vida “fé e esperança” e morra de rir e de velho”.
         “Contra ladrões de todas as classes, use fechaduras “decreto lei” as únicas que fecham com você, por você e para você – a fechadura mais democrática e incorrompível do país”.
         “Para sua segurança pessoal recomendamos Jairo (vulgo tripa de aço) – forte, discreto, ágil, bilíngüe, digitador, sertanejo, primeiro grau completo, sincero e boa praça – pegue Jairo e largue o resto...”
         “Sequestrin é pílula do sossego – para o seqüestro e similares use Sequestrin – a pílula que resgata seu bem estar – antes, durante e depois...”
         “Em assaltos e seqüestros utilize gás lacrimogênio/´´espirro” – o gás que produz efeitos mesmo sem causas. Use gás. Na compra de cem m3 você leva, de graça, uma máscara anti-gás...” 
          “Poção da invisibilidade Merlin – para você se fazer ausente quando a confusão estiver presente – escape – quem não é visto não é lembrado – nem assaltado...”
         “Karatê Ka-Ku-Fun, a melhor técnica de defesa pessoal – a única que defende de uma vez por todas e não deixa pistas...”
         “Celular “sequestron” – o que dá linha mesmo que você esteja na amarra. Telefone acima de qualquer suspeita e a prova de incompetências gerais. Ligue para nós. Retornaremos a ligação assim que der linha...”
         “Para chatear e desequilibrar assaltantes e seqüestradores rode Cds do Tiririca – os únicos que são unicamente enjoados”.
         Pois é – estou falando e falando – impunemente – e ainda não providenciei meu jantar. Vou fazê-lo agora, na tranqüilidade da noite pedritense.
- “Mãos ao alto – é um assalto”.
- “Calma – tudo bem – leva o pacote”.
- “O que tem aí?”
- “Galinha assada – tá quentinha”.
- “Não gosto de galinha – quero grana”.
- “Estou liso. Só tenho cheque”.
- “Serve”.
- “Tem que ser pré-datado. Só pra semana que vem – tá certo?”
- “Tudo bem, chefia – podes confiar”.
        É isso aí – ladrão honesto é outra coisa...
        Este assalto está sendo transmitido (ou será reproduzido) por conta das pílulas Ok, das armas “alvo” e da Escola de Defesa Pessoal “pé no pescoço”.
        A seguir mais uma atração de sua rede sucesso – Lar doce Lar – um oferecimento dos tanques de guerra urutu...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

UNANIMEMENTE ANÔNIMA...!




         Terêncio era uma figura humana quase curricular. Em todos os cantos, em qualquer roda, marcava sua presença sempre espirituosa. Na preguiça das tardes ou na eloqüência das noites, aparecia, capengante, para mudar a história ou confirmar o destino. Com o hábito, tornou-se indispensável nas reuniões mais corriqueiras ou nos encontros mais reservados. Às vezes não dizia nada. Apenas seu resmungo inconfundível (e intransferível) acusava sua densa e espalhafatosa presença. Outras vezes, era verborréico, ousado, filosófico e incomodamente intrometido. Estava sempre pendurado nas limosas beiradas do poder. Convivia, fraternalmente, com autoridades, com chefes políticos, com próceres, com líderes populares, com ciscunstantes estranhos, com artistas, malabaristas, bacharéis, coronéis, enfim – Terêncio estava sempre onde se desenhava a equação da decisão.
         Terêncio tinha o particular poder de aspergir um sutil comentário para catalizar o debate. Conhecia todo o mundo e sabia de tudo! Sabia da dinâmica sócio-política do lugar. Morava no hotel mas habitava a alma da cidade...
         Tinha ares de senador. Falava como profeta, andava como fariseu, invocava verdades magnânimas, filosofava em plena praça, bebia café em copo e formulava perguntas, engenhosamente, irrespondíveis. Terêncio era um ensaio vivo da lógica do absurdo... Era tudo e não era nada!
         Certa feita, presente em uma expressiva reunião política, sentiu-se encorajado a discursar. Homenageava-se, na ocasião, uma brilhante e insinuante liderança governamental, responsável por vários e brilhantes fatos e feitos na área da educação oficial. Depois de longa peroração elogiosa pela presença de tão ilustre autoridade, fez enfática pausa oratória e tonitroou, sem reservas: - “a ignorância governamental é unânime!...”
- O auditório colheu o constrangimento em silencioso sobressalto. Alguém puxou a manga do casaco de Terêncio, à guisa de reprovação, querendo mostrar que o próprio governo ali estava representado na figura do ilustre Secretário da Educação que, gentilmente, visitava a cidade. Terêncio, então, recompôs-se, engolindo, com veemência, a própria pausa para complementar: - eu me corrijo: - “a ignorância é unanimemente anônima”...
Até hoje, e pelos dias que virão, jamais saberemos se isso foi uma crítica ou um elogio (?)...
O fato é, que, depois disso, generosas verbas governamentais aqui aportaram para proveito de todos nós. E os proveitos  eleitorais não foram “unanimemente anônimos”...

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

A Coisa


Varrendo a sala, Frauzina achou um botão preto de paletó. Não era bem um botão, nem bem preto era. Na verdade, era um pequeno cone com três furinhos e uma diminuta haste no centro. O que era aquilo??
Frauzina, mulher sofrida, com tantos ainda por criar, não muito vocacionada para indagações mais profundas, pôs de lado o estranho objeto a fim de entrega-lo ao patrão. Não era brilhante nem sonante. Não era pesado e sequer tinha alguma inscrição. Não valia nada mas lixo não era. Era o que parecia. O que era, então?
Pelo sim, pelo não, o melhor era entregar “a coisa” ao seu Getúlio, o patrão, homem severo, porém justo. De repente poderia lhe valer uma gorjeta extra...!
Será que aquela coisinha não era parte importante da geringonça complicada que o Dr. Getúlio vive lidando e que tinha um nome até bem indecente? Melhor que não fosse, pois poderia pensar que a estabanação de Frauzina é que tinha causado o desgarramento daquela peça vital de seu intocável e amado computador...
Temerosa e cheia de dedos, Frauzina entregou ao chefe, na hora do almoço, o tal primo enjeitado do botão de paletó.
Dr. Getúlio, cidadão de muitos afazeres e diversas atribuições, examinou o pequeno cone com medida curiosidade entre apressadas e compulsivas mastigadas:
-         Ah, ah, uh, uh, o que é isso, Frauzina?
-         Não sei, não senhor.
-         Como, não sabe?
-         Não sei, Dr. Getúlio.
-         Onde estava?
-         Ali no lado do sofá.
-         Que sofá?
-         O da sala, sim senhor.
-         Que sala?
-         A das visitas, sim senhor.
-         Eu lá tenho tempo para visitas, Frauzina?
-         Pois é, não, sim senhor.
-         Visitas... ora bolas...
-         Parece um botão, doutor...
-         Parece mas não é. Onde já se viu um botão desse jeito?...
-         Pois não, sim senhor.
-         Isso deve ser coisa de comunistas...
-         Como disse, doutor?
-         Não disse nada. Só pensei...
-         Sim senhor.
-         Ah, então também achas que é?
-         Senhor?...
-         Nada, nada, traz o feijão.
-         Hoje não tem – a panela estragou...
-         Estragou?
-         É sim, não quer cozinhar...
-         E panela tem querer, Frauzina?...
-         Pois é, a panela não presta mais...
-         Então já sei, esta porcaria é da tal panela...
-         Da panela não é, não senhor.
-         Ué, por quê?
-         Porque tá furada...só...
-         E eu mereço ter panela furada?...
-         Senhor?
-         Deixa prá lá.
Nisso chegou, efusivo, o sempre oportuno secretario Etelvino, mais conhecido por Vino um serviçal de mão cheia.
-         O que é isso, Vino? – indagou Getúlio, segurando “a coisa” com decisão.
-         Isso é um retentor de motor de moto, está visto, doutor.
-         Que moto; Etelvino? Na sala, no lado do sofá?...
-         Então é um terminal do pino central da engrenagem principal de uma moto-serra...
-         Tu tá ficando louco, Vino...?
-         Vendo melhor, parece ser a conexão terminal de um respirador artificial...
-         Eu desisto!
-         Espere, espere, isso é a peça de engate do mecanismo de propulsão de uma nave espacial, não tripulada.
-         Pode parar, Etelvino! Chega, deu para tua fértil imaginação...
-         Mas que parece, parece...
O que seria aquilo afinal?
Seria a conta de um rosário futurista? Seria a trava mestra do cofre do FMI? Ou seria a chave de um míssil intercontinental?
Há quem diga que aquilo era apenas um pedacinho, descartável, de um inocente veideogame. Poderia ser o componente de uma geladeira boa e barata ou até mesmo parte de um telefone de um manso corretor da bolsa.
Não faltaria quem afirmasse que aquilo pertencia aos Sem Terra. Seria grande o grupo dos que entendiam que a coisa, fosse o que fosse, deveria ser privatizada, sem demora.
Idéias de um lado, sugestões do outro, Getúlio resolveu pôr fim à questão. Pegou a coisa, examinou com lente, apertou entre os dentes, sacudiu, bateu, esfregou na camisa, assoprou e jogou pela janela. Em menos de trinta segundos ouviu estrondo infinitamente crucial: Tinha dado inicio a terceira guerra mundial...



DOR NO VINTE E QUATRO


Numa concorrida sala de espera médica, Juvêncio esperava a vez de consultar. Enquanto aguardava, grudou o olho num desses mapas do corpo humano onde aparecem os órgãos e as regiões, devidamente numeradas. O estômago era o seis, a laringe o 12, o pulmão direito estampava o número dezenove, o fígado o oito, o pâncreas o sete e assim por diante. Juvêncio estava encantado com aquela aula silenciosa de anatomia – tão simples e tão clara – para se entender e explicar as coisas que a gente sente no corpo e que, muitas vezes, não sabe dizer. Enquanto olhava, atentamente, pensava em sua sogra, coitada, que tanto tinha sofrido com problemas no 21...
Já o compadre Alípio, que não tinha mais o dezesseis nem o 32 estava gordo e corado fazendo planos para, um dia, se ver livre do 22.
Quando chegou a sua vez, Juvêncio entrou, firme e confiante no consultório, revelando, de cara, que seu problema maior era no 24. Na verdade, a dor rebatia no dezoito, escorria pelo dezessete mas ia se aninhar no 24.
-         É aí, doutor, sem mais e nem menos. Não tem erro, pode acreditar.
 O médico, bom também de psicologia, inseriu-se no contexto do diagnóstico numeral de Juvêncio.
-         E o 25, como está?
-         Está ótimo, doutor.
-         E o vinte e seis?
-         Ah, esse tá novinho em folha...
-         É aí mesmo doutor.
-         Pois, então, vou te dar este remédio que vai resolver.
Coincidentemente a droga vinha num vidro com 24 drágeas e deveria ser tomada de 24 em 24 horas.
Juvêncio foi para casa feliz e não mais se queixou.
Choveu, ventou, passou. Lá um dia, depois de lauta feijoada e caipirinha generosa, Juvêncio voltou a sentir dores intestinais. Mas não era bem no 24 – era mais para baixo. Fechou os olhos tentando lembrar o mapa do corpo humano e os números dos órgãos – memória era que não lhe faltava – e descobriu que seu mal, agora, era no 48.
-         Tens que voltar lá no doutor – sentenciou a mulher, do alto do seu crochê, olhando a novela das sete.
-         Agora só segunda e hoje é sábado. Não vou incomodar o homem que deve estar descansando...
-         É, mas daqui até lá, muita coisa pode acontecer – comentou a experiente sogra, enquanto liquidava uma fornada de bolinhos de milho.
-         Mas eu não vou incomodar o doutor – disse, determinado, Juvêncio, enfiado na bombacha de descansar.
-         E, sabe do que mais (?) – eu mesmo sei como resolver este assunto.
Me passa os comprimidos pra cá – pediu, imperativo.
-         Mas esse são para o 24. Vêncio – alertou a mulher, levantando os olhos da costura.
-         Não interessa. Me passa pra cá e traz um copo de leite.
Decidido, pegou duas drágeas e tocou-as garganta a dentro, com um gole gordo de leite fervido que ele próprio tirara na véspera.
-         Pronto – o que tem que ser vai ser...!
-         Credo, homem, tomaste o remédio do 24... – disse a cunhada, com voz falseada e crítica nos olhos.
-         Então tá tudo certo. Meu problema agora é no 48 e tomei duas do 24 – não tem erro...
E não tinha. Juvêncio melhorou, para pasmo geral de sua platéia doméstica e assombro especial da medicina...
E siga o baile...