terça-feira, 19 de julho de 2011

DEDAIS

Depois de várias tentativas, Rosália conseguira passar a linha pelo diminuto buraco de sua velha agulha. Olhos cansados, mão trêmula e luz velada, fazem penosa a tarefa costureira. Um cerzido aqui, um cosido ali, ia tecendo sua sovada solidão, atrás dos óculos turvos, do dedal amigo e das pantufas encardidas.
Gileu, o gato, agora pardo, gastava a rapa de sua sétima vida felina, sonhando com os ratos do porão. No fogão, ainda ardia o cerne daquele espinilho que Chico arrastara da tapera. Lá fora, a noite, qual manto surrado, furado de frias estrelas, caía serena sobre os ombros do pálido dia vencido. Dentro, a heróica Rosália ponteava sua treinada agulha, remendando os trapos da angústia, cosendo os andrajos do silêncio...
Agulha vai, agulha vem – quanto pensar para coser um bem!...
Maria perdeu seu filho. Que mais teria perdido Maria, se não tivesse filhos? Duas voltas de linha grossa nesse botão, para que não se despregue outra vez.
Pedro não achou sua lavra de ouro. Que ganharia Pedro, garimpando ouro, se a humanidade já se vendeu por esmeraldas? Um nó cego no cerzido para que não se rompa de novo.
Sem fé, o mundo está perdido. Sem mundo, o que seria da fé? Passa a agulha no pano grosso, com força, mas segura com o dedal pra não espetar o dedo.
Mais vale um pão na boca do que muitos na ilusão... A fome é um invento ou um descobrimento? Esta meia tem muito mais furos que tecido. Mais valerá comprar uma nova. Quanto custará? Nada menos que trinta e três remendos.
A amizade não tem limites. A inimizade também não. O colarinho não presta mais. Será preciso tirar o bolso para servir de gola. O que vale mais – o colarinho ou o bolso?...
Quem não come morre. Quem come também. Quem sacia a fome da morte? Quem?
Agulha vai, agulha vem – um dedal detém...
A felicidade está onde a pomos. Onde a pomos?
Onde está o carretel que estava aqui? Sai pra lá, Gileu!...
As linhas da mão mostram o futuro e as da testa o passado. Dizem que o destino é quem faz os traços da mão e é feito pelos da testa. Dizem...
Ih, escapou a linha, outra vez. A saudade é a filha mais velha da loucura. Ou será o contrário?...
E a paixão, o que é? E a velhice o que é?
Coser é preciso – perguntar não é.
Costurar e costurar sem parar – a barra da calça vadia, o botão do doutor, o carpim do padre, o véu da noiva, a farda do sargento, a asa do querubim, a saia da solteirona, a camisa do detento, a bandeira do Divino, o lenço do chorão, o manto da viúva, a máscara do palhaço, o cobertor do vivente, o terno do ausente, as pregas da emoção, botões da razão – retalhos do coração.
Agulha vai e vem – um dedal detém...
Quem costura minh`alma? Quem cerze meu coração?
Quem remenda meu bem e meu mal – sem usar dedal?...
Esta colcha está comida de traças mas aquele lençol esfarrapou-se de amor!...
Quem arranca minha dor? Quem conserta minha solidão?
Quero linha branca. E preta também. Onde estão os botões? Cadê o dedal? Quantos camelos, pelo buraco, passarão?
Coser é preciso – perguntar não é...
Sai pra lá, Gileu... Sai!

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