segunda-feira, 18 de maio de 2015

Cena doméstica


Pai e filho adolescente sentados lado a lado no sofá na frente da TV, tentam se reencontrar depois de longa e penosa jornada cotidiana.
O pai, homem de muitos labores estampava uma estafa justificada, após o abate de muitos leões naquele dia útil. O filho adolescentemente entediado, com o mesmo nada de sempre para fazer, clicava obsessiva e compulsoriamente seu tablete nº 6, já sobejamente ultrapassado pelo nº 7, mais caro e com meio giga a mais de tecnologia embarcada.
O pai recuperando-se do cansaço vira-se para o filho e pergunta:
“- E aí, campeão, tudo bem?”
“- Tudo!” – responde o piá, nem um pouco afim de papo. Seu mundo naquele momento é a telinha cheia de janelas abertas para o mundo informático: - face, whatsapp, twitter e aquela hemorragia de joguinhos irados, não permitem meio segundo de desatenção.
“- Como foi teu dia?” – insiste o pai cansadão, tentando achar o fio da meada de uma comunicação familiar fundamental?
“- Legal” – responde o filhão laconicamente, hipnotizado pelo touch de seu Ipod.
“- Cadê tua mãe, rafa?”
“- Sei lá – está fora de área.”
“- Como assim?”
“- Sei lá pai – está por aí ...”
“- E a Maria?”
“- Sei não, pai.” E dêle click no tablet. Não tem nada mais interessante que isso, no momento, para o garotão.
“- Pô – meu filho – quero conversar...”
“- Qual é (?) pai – tu tá atrapalhando.”
“- Atrapalhando o que, moleque? – Quero bater um papo.”
“- Tá bom. Segura um pouco – tô na boa com a turma...”
“- Pô – Rafa. Que turma? O que que há?”
“- Pô, careta não enche...”
“- Tu me respeita, rapaz – larga essa coisa senão vai ter...”
“- Tá legal, coroa – fala.”
“- Não filhão. Não é assim. Só queria saber de ti...”
“- Tô legal.”
“- Só isso?”
“- Só!”
“- O que fizeste hoje?”
“- Nada de mais – Tô aí...”
E assim seguiria esse “diálogo” do absurdo por séculos, sem nada de positivo para se colher.
O pai, depois de um dia inteiro de ausência, por força das circunstâncias de uma pesada jornada de trabalho para botar feijão na mesa, queria um lúdico momento de paz familiar onde pudesse resgatar a reconfortante conversa amorosa com os seus.
O filhão, naquela fase difícil do crescimento, onde seu próprio umbigo traça as diretrizes da vida e impõe os rumos decisivos do mundo, está bem distante dessas coisas de conversa olho no olho, boca contra ouvido, proximidade física e outras chatices desse embrulho careta chamado família...
Queiramos ou não, o fato é que se instalara entre uns e todos um descomunal abismo de anti-comunicação.
E nesses termos,  diante de tal realidade seria perda de tempo insistir por vias convencionais, e diga-se, antiquadas, para se ter o tradicional diálogo familiar.
Mas como não está morto quem peleia, o dedicado chefe da família, num lampejo genial, recobrando um byte de forças, desinstala-se do sofá, vai até sua mochila e saca dali seu Iphone 5, que felizmente ainda guardava uma réstia de carga na bateria.
Com tela cheia compôs e checou uma mensagem por whatsapp para o filhão.
“- E aí, queridão (?) – tudo bem contigo?”
“- Oi paizão – tudo bem. E tu?”
“- Aqui estou, filhão – morto de saudade.”
“- Pô – legal pai – eu também. Como foi teu dia?”
“- Muito trabalho, filho. A coisa não está fácil.”
“- É isso aí, coroa – bota prá quebrar. Te amo.”
“- Também te amo, filhão.”
“- E a mana, Rafa?”
“- Não sei – deve estar no twitter – tenta conectar...”
“- Oi Maria – tudo bem?”
“- Oi melhor pai do mundo. Tudo bem. Fala rápido porque estou na melhor e mais irada falação com a Re e com o Fabi.”
“- Tudo bem – só queria saber de ti. (?)”
“- Tudo na boa, velhão – fica frio.”
“- Que bom, filhota. Só mais uma coisinha. Cadê tua mãe.”
“- Oi paizão – tá no Face, claro!  Entra lá...”
“- Ok – vou entrar. Oi Madalena? Estás por aí?”
“- Oi meu amor. Por onde andaste, seu sumido?”
“- Trabalhando, Lena – trabalhando – ih – p. q. t. p. – acabou a bateria ...”
E aí a vida (moderna) fala: - põe o dispositivo na tomada, e amanhã com carga cheia tenta baixar o aplicativo “amor com, sem ou apesar da internet”.
Será que vai funcionar?...
Só os deuses do “sistema” saberão responder.
Mas uma esperança esperta espreita atrás da coxilha, louca para entrar em cena: - a anunciada (e ameaçadora) falta de energia elétrica, para os próximos dias.
Sem tomada viva para carregar os aparelhos certamente, em breve, estaremos desconectados. Eis nossa grande chance de uma conexão familiar legal, proativa e promissora. Viva – a vida doméstica está salva!
E aí, diremos o que uns para os outros?
Eu arrisco: - “pô – e essa luz quando voltará? Pô! Pô!
Qual é?”!...

Nenhum comentário:

Postar um comentário