Jarbas, dado e dedicado ao saudável e cansativo
exercício da novidade, resolveu adquirir a última geração de móvel modulado,
coisa do terceiro milênio... “Pratex” é o nome desse achado cibernético.
Pintava
novidade na praça e lá estava o Jarbas largando em primeiro lugar. Sob os
ruidosos protestos da mulher, conseguiu pilotar, com maestria e diplomacia, a
meia dúzia de infelizes carregadores até a parede sul de seu gabinete.
OBS: O
tal móvel, tão moderno, não era necessária ou suficientemente desmontável. Mais
adiante veremos que esta razão tem razões que a própria loucura desconhece.
Pronto!
Meu lar, meu reino, lá estava a nova “geringonça”, cheia de portas, gavetas,
luzes e botões. Parecia um mastodonte funk desfalecido.
Ali
poderia acomodar o som, a televisão, o vídeo, o computador, o bar, a biblioteca
(parte dela), jogos, enfeites e alguns troféus.
Era ou
não era uma maravilha?...
A
esposa, de nariz torcido, comentou profeticamente ao vento, agora mais escasso:
-
“Quero ver quem vai arrancar essa coisa daí quando nos mudarmos...”
É claro, Jarbas, com seu
espírito de inquieta vanguarda, vez que outra inventava mudanças. A monotonia
do mundo era mera e desprezível exceção na dinâmica de Jarbas... Viver era
mudar, mudar era viver!
Feliz com o brinquedo novo
tratou logo de acomodar a parafernália tecnológica, cultural, lúdica,
alcoólica, informática, etc, etc. É tudo comandado por suaves e anatômicos
botões na direta ou no controle remoto. Remotíssimo, por sinal...
Comodidade é para quem pode
e quer, quer e pode. “A modernidade deve ser a Bíblia dos que gostam de olhar a
vida de frente” – costumava filosofar ligeiramente depois de duas cervejas.
Mas tal prodígio não poderia
ficar assim anônimo, entre quatro paredes, curtindo um ostracismo prematuramente
injusto. Era preciso convidar amigos, parentes e vizinhos para uma solene
sessão de testes, apreciação e devaneios.
Dito e feito. No fim de
semana foram todos convocados para um pequeno e despretensioso convescote.
Os chegados foram logo
conduzidos para o reduto do espetáculo. Jarbas não cansava de mostrar e
demonstrar a novidade. Admiração de uns, desconfiança de outros, inveja de
todos, formou ali um clero de encantados e pasmados.
“Podem usar a vontade” –
disse Jarbas, com voluntariosa prodigalidade.
O vizinho da frente, amigo
fiel das coisas do bar, tomou a dianteira e foi saciar sua sede. Pretendendo
servir-se generosamente de algo que pegue fogo, apertou o botão mais próximo e
foi surpreendido com a nona de Bethoven.
Quase caiu de costas. Depois
do susto precisou beber além da conta.
O cunhado, um furioso
abstêmio, querendo achar um livro de Proust foi praticamente constrangido a
beber um Martini doce, com azeitona e tudo.
Pior foi o caso do
Alcibíades, noveleiro de quatro costados que além de perder aquele capítulo
decisivo foi obrigado a recompor o quebra-cabeça ouvindo Mickel Jackson.
Pequenos acidentes de
percurso. Era preciso reler o manual de instruções. Só isso.
Lido pausadamente em voz
alta para que todos ouvissem, memorizassem e entendessem, deu-se nova partida à
sessão dos experimentos.
Dessa vez foi o tio Fermino
a próxima vítima. Apertou os botões e nada aconteceu. Apertou de novo e
apagaram-se as luzes da casa. Apertou mais uma vez e deu descarga no banheiro
da empregada. Entregou o controle para o Jarbas, como se entregasse um tijolo
quente.
“Esse troço está mal
ligado”, disse Climaco, muito ciente e convicto.
“Essa coisa é mal
assombrada”, gritou histérica Geni perto da porta da rua.
“Nada disso, gente, a coisa
funciona maravilhosamente” interferiu Jarbas, ansioso com os acontecidos.
Apertou os botões, deu umas batidinhas na lateral, abriu a terceira gaveta,
chutou a porta da esquerda e acendeu a televisão 30 polegadas, no justo momento
em que o tele-locutor informava que os deputados tinham decidido diminuir seus
salários...
Nesse momento todos
levantaram e foram saindo de fininho, sem despedidas, cheios de medo porque o
fim do mundo estava por acontecer...
O móvel de Jarbas era, de fato,
uma assombração difícil de remover...
Ou não era??...
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