quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Móvel


      Jarbas, dado e dedicado ao saudável e cansativo exercício da novidade, resolveu adquirir a última geração de móvel modulado, coisa do terceiro milênio... “Pratex” é o nome desse achado cibernético.
         Pintava novidade na praça e lá estava o Jarbas largando em primeiro lugar. Sob os ruidosos protestos da mulher, conseguiu pilotar, com maestria e diplomacia, a meia dúzia de infelizes carregadores até a parede sul de seu gabinete.
         OBS: O tal móvel, tão moderno, não era necessária ou suficientemente desmontável. Mais adiante veremos que esta razão tem razões que a própria loucura desconhece.
         Pronto! Meu lar, meu reino, lá estava a nova “geringonça”, cheia de portas, gavetas, luzes e botões. Parecia um mastodonte funk desfalecido.
         Ali poderia acomodar o som, a televisão, o vídeo, o computador, o bar, a biblioteca (parte dela), jogos, enfeites e alguns troféus.
         Era ou não era uma maravilha?...
         A esposa, de nariz torcido, comentou profeticamente ao vento, agora mais escasso:
-         “Quero ver quem vai arrancar essa coisa daí quando nos mudarmos...”
É claro, Jarbas, com seu espírito de inquieta vanguarda, vez que outra inventava mudanças. A monotonia do mundo era mera e desprezível exceção na dinâmica de Jarbas... Viver era mudar, mudar era viver!
Feliz com o brinquedo novo tratou logo de acomodar a parafernália tecnológica, cultural, lúdica, alcoólica, informática, etc, etc. É tudo comandado por suaves e anatômicos botões na direta ou no controle remoto. Remotíssimo, por sinal...
Comodidade é para quem pode e quer, quer e pode. “A modernidade deve ser a Bíblia dos que gostam de olhar a vida de frente” – costumava filosofar ligeiramente depois de duas cervejas.
Mas tal prodígio não poderia ficar assim anônimo, entre quatro paredes, curtindo um ostracismo prematuramente injusto. Era preciso convidar amigos, parentes e vizinhos para uma solene sessão de testes, apreciação e devaneios.
Dito e feito. No fim de semana foram todos convocados para um pequeno e despretensioso convescote.
Os chegados foram logo conduzidos para o reduto do espetáculo. Jarbas não cansava de mostrar e demonstrar a novidade. Admiração de uns, desconfiança de outros, inveja de todos, formou ali um clero de encantados e pasmados.
“Podem usar a vontade” – disse Jarbas, com voluntariosa prodigalidade.
O vizinho da frente, amigo fiel das coisas do bar, tomou a dianteira e foi saciar sua sede. Pretendendo servir-se generosamente de algo que pegue fogo, apertou o botão mais próximo e foi surpreendido com a nona de Bethoven.
Quase caiu de costas. Depois do susto precisou beber além da conta.
O cunhado, um furioso abstêmio, querendo achar um livro de Proust foi praticamente constrangido a beber um Martini doce, com azeitona e tudo.
Pior foi o caso do Alcibíades, noveleiro de quatro costados que além de perder aquele capítulo decisivo foi obrigado a recompor o quebra-cabeça ouvindo Mickel Jackson.
Pequenos acidentes de percurso. Era preciso reler o manual de instruções. Só isso.
Lido pausadamente em voz alta para que todos ouvissem, memorizassem e entendessem, deu-se nova partida à sessão dos experimentos.
Dessa vez foi o tio Fermino a próxima vítima. Apertou os botões e nada aconteceu. Apertou de novo e apagaram-se as luzes da casa. Apertou mais uma vez e deu descarga no banheiro da empregada. Entregou o controle para o Jarbas, como se entregasse um tijolo quente.
“Esse troço está mal ligado”, disse Climaco, muito ciente e convicto.
“Essa coisa é mal assombrada”, gritou histérica Geni perto da porta da rua.
“Nada disso, gente, a coisa funciona maravilhosamente” interferiu Jarbas, ansioso com os acontecidos. Apertou os botões, deu umas batidinhas na lateral, abriu a terceira gaveta, chutou a porta da esquerda e acendeu a televisão 30 polegadas, no justo momento em que o tele-locutor informava que os deputados tinham decidido diminuir seus salários...
Nesse momento todos levantaram e foram saindo de fininho, sem despedidas, cheios de medo porque o fim do mundo estava por acontecer...
O móvel de Jarbas era, de fato, uma assombração difícil de remover...
Ou não era??...

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