quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

FOGÕES




         De barraca e caravana, resolveu se aventurar pela selva consumista em busca de boas caçadas. Depois de se abastecer, lautamente, no perigoso e movediço reduto das liquidações, unindo o útil ao agradável, decidiu embrenhar-se no mato cerrado dos eletro-domésticos. Queria caçar um fogão à gás, tão oportuno quanto necessário, para cozer a farta merenda nestes tempos de moeda forte.
         Logo percebeu que há fogões e fogões. No relance parecem todos iguais mas quando a observação dos detalhes salta pelos olhos, entra pelo nariz, fere a ponta dos dedos, despetala a flor da pele e pede abrigo na orelha esquerda, os fogões são bem diferentes entre si. Uns tem isto e aquilo e outros não. Na verdade, todos cozinham, mas uns mais que outros – mais e melhor – diz a propaganda.
         Notando imensa diferença de preço entre dois fogões, aparentemente iguais, quis saber a razão da gritante distinção. O vendedor, cheio de si, robotizado pelo reclame – mídia/marketing – falou, com garbo, do altíssimo de sua diferenciada qualificação:
-         “É que este tem forno auto-limpante...!”
-         “Como assim?”
-         “O forno auto-limpante, está visto”!
-         “Significa, então, que, uma vez sujo, ele próprio tomará a iniciativa de limpar-se, poupando penoso e pesado trabalho à sofrida e incompreendida dona de casa??...”
-         “Mais ou menos...”
-         “Como (?) – mais ou menos...?”
-         “Sim – veja bem – o material das paredes de seu forno é anti-aderente e isso, por si só, facilitará a limpeza...”
-         “Afinal, quem limpa quem??”
-         “Ora, cada um limpa seu fogão. Só que este, por suas características intrínsecas e funcionais tornará mais rápida e amena a tarefa da limpeza”.
-         “Ah, bom. Pensei estar diante de um prodígio que, sem ninguém mandar, providenciava sua própria higienização logo após a divertida rotina de assados, gratinados, cozidos, etc”.
-         “Aí a senhora também está querendo demais...”
-         “Não – acho que a propaganda é que está falando demais...”
Mesmo com a discussão (ou por causa dela) resolveu comprar o fogão.
No fundo, alimenta a esperança de que a geringonça, de repente, magicamente, como na história de Gepeto, surpreenda o mundo (e especialmente a cozinheira) e saia por aí, subvertendo as paralelas da cibernética, assumindo tarefas e funções nunca dantes cozinhadas. Além de limpar-se, como qualquer mortal decente faria, reservará para si obrigações outras tais como encomendar (e pagar) seu próprio gás; arear as panelas; acender-se e apagar-se com discreção na hora certa; negar-se de cozinhar gorduras saturadas em nome da proteção às coronárias de seus queridos donos; não permitir que o leite derrame, que o churrasco queime nem que o souflê se inflame – enfim – um fogão primeiro-mundista, consciente, providente, competente, digno da tecnologia formalista ( e moralista) que o concebeu.
O fabricante terá o cuidado de não apor um rabo no prodígio para que donos mais distraídos não o confundam com Max, o cachorro bem adestrado da família.
Apesar do alarido da propaganda, esse fogão-prodígio ainda não está disponível no mercado. Felizmente! Não será por muito tempo. Logo, logo – no passo em que vamos – hospedaremos, em nosso lar (nosso reino), genialidade desse tipo. Pagaremos alto preço por esse progresso. E não, necessariamente, em dinheiro. Pagaremos o preço da partilha compulsória de nossa autoridade e independência. Um fogão capaz de tudo isso, numa segunda-feira qualquer, baterá na mesa exigindo poder de veto em nossas domésticas decisões.
Vai querer influir na educação das crianças, no penteado da patroa, na gaveta do patrão, na cor do carro, na marca da televisão, enfim – será um chato de galochas movido à gás, eletricidade ou o raio que o parta... Seu poder de barganha é poderosíssimo: - faça-se o que ele quer ou não cozinha... Já imaginaram?...
Antecipo a cena seguinte dessa solução sem volta. Na beira de uma sanga barrenta, recolhido ao próprio tédio, vejo o dono de casa, munido de primitivo anzol, tentando pescar o almoço para, enfim, cozinhá-lo no fogo-fátuo de uma improvisada e desarranjada fogueira, choramingando o destino da fumaça que entra pelos olhos e se perde na imensidão...
E viva o progresso!...
Sejamos reacionários, enquanto é tempo. Fogão é para cozinhar: relógio é para marcar as horas; cadeira é para sentar; sofá é para namorar; televisão é para divertir; carro é para conduzir; vassoura é para varrer; faca é para cortar; cama é para dormir; camisa é para vestir; cigarro é para fumar; telefone é para comunicar; estufa é para aquecer; cofre é para guardar; água é para beber; poesia é para sensibilizar; pente é para pentear; chave é para abrir...
Convenhamos – chave também serve para fechar. Chave se perde e, muitas vezes, nunca mais se encontra.
Para que servem as coisas?...
O tempo dirá!...
O tempo ou o computador?...
O que diz o fogão?...!

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