terça-feira, 4 de junho de 2013

O erro

Quando soube da morte de Isolda, sua amiga de credo e vida, Ledir levou a mão ao peito e sentiu aquela angústia das perdas difíceis de repor. Um tsunami de tristeza invadiu sua praia de tolerância e um grande alague de melancolia varreu a planície de sua felicidade, levando tudo por diante. Um caos emocional digno da mais cruel e catastrófica cinematografia  sentimental capaz de despertar as maiores comoções relacionais, estava posto em cena, com direito a efeitos especiais e compungidos arranjos no roteiro de uma fatalidade cênica.
Perder alguém é deveras difícil. Perder uma amiga do peito – pessoa que por tantos e gloriosos tempos foi parceira na fiação da existência cotidiana, era abismo sepulcral, tirador de fôlego e alegria de viver.
A vida, infelizmente, um dia nos apronta esse tipo de coisa e não há remédio senão tentar remediar o imenso estrago.
Com esse ânimo, com dores inconfessáveis, Ledir correu para o velório, na esperança de pinçar uma réstia de luz na imagem inerte da amiga, que por força da memória e do sentimento fraternal ainda quente, poderia esboçar um último e confortador até breve.
Chegou ao velório sofridamente, aproximou-se da amiga morta convenientemente escondida sob leve manto no rosto, apertou sua mão desfalecida e pranteou copiosamente a perda irreparável e inoportuna. Chorou como devem chorar as almas puras neste vale das sofreguidões humanas.
No entorno uma porção de circunstantes testemunharam, com olhares arregalados, tamanha demonstração de carinho e dor.
Ato seguinte, ao desvendar o rosto da amiga, chocou-se ao perceber que não era ela que ali estava. Jazia naquele leito um ele, cheio de morte e mansidão.
Naquele sepulcro intermediário deitava-se alguém que nem de longe lembrava a querida amiga. Na encomendação desta para melhor ali repousava quietamente Ferdinando, homem de muita história, e conhecidas e reconhecidas aventuras pouco ortodoxas e cá, entre nós, ruidosa e escandalosamente amorosas. O que se dizia, sem contestação, que o dito salafrário em vida tinha usado e abusado de seu inefável poder conquistador. Homem de muitas mulheres e grandes bacanais.
Dizem até que a família convencional (e legal) já tinha contabilizado os vértices, as porções e os escapes desse inveterado Dom Juan. Naquele momento extremo estava, em verdade tudo dominado e perdoado. A viúva, resignada, já tinha no caderno a lista impublicável dos achegos e das amantes do safado pulador de muros.
Mas naquele azo a história se complicou. Quem seria a loira, que derramava lágrimas compulsivamente pelo desaparecimento do safardana?
Não estava na lista. Não constava na relação. Quem seria essa, com tamanha força em seu sentimento de perda, que constrangia os demais, com seus soluços ruidosos e saudosos?
Ferdinando, embora já do outro lado, aumentava, assustadoramente, os créditos de sua condição conquistadora, deixando no ar uma aura desafiadora no contexto das relações casamentais: - só na morte se saberá de fato toda a verdade – doa a quem doer.
Será?
Chorar em velório errado não tem o poder de mudar a história mas balança as circunstâncias de nossa comezinha vida neste pedacinho de universo acidental.
Não acreditam?
Chore erradamente e topará com essa e outras verdades rigorosamente inenarráveis. A vida e a morte cheias de surpresas – umas fazem rir, outras fazem chorar – de rir...


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